Jazz para três ditadores e um país improvisadoHitler, Mussolini e Salazar encontram-se um dia às portas de São Pedro, que medita pacientemente no karma que melhor se aplica às suas malévolas acções do passado.
Consultadas as divindades e Saturno, é-lhes então anunciada a sentença redentora:
- Lamento informá-los, meus irmãos, mas os vossos crimes são muito graves e a única forma de expiação dos pecados que haveis cometido é enviar-vos de volta ao vosso Mundo como músicos de jazz...
Hitler explode violentamente, como é seu timbre, e afirma, ora erguendo o dedo para São Pedro, ora batendo violentamente com o punho numa nuvem mais espessa:
- Isso nunca! Não perdi anos da minha vida a perseguir esses negróides corruptores da cultura alemã clássica e do meu Wagner para ir agora tocar essas aberrações sincopadas e primitivas!! No meu tempo essa música estava banida... - afirma com uma cotovelada cúmplice em Mussolini.
Salazar, mais comedido, roça as mãos uma pela outra, num indisfarçável nervosismo, meditando sobre se haverá possibilidade de haver algum clube desta música na sua Santa Comba Dão e, quem sabe, S. Pedro enviá-lo a ele e aos seus amigos de volta ao seu cantinho à beira mar plantado...
Já Mussolini limita-se a afirmar resignado:
- Bem, eu até tenho um filho que toca isso... Desde que não me obriguem a fazer o pino...
Hitler deixa escapar um ligeiro sorriso e acrescenta:
- Sempre foste um permissivo, meu caro Duce... Agora percebo porque te penduraram de cabeça para baixo em Milão. Um filho a tocar jazz...
Porém, São Pedro é peremptório e começa a distribuir os papéis de cada um no trio:
- A ti, que a Alemanha conheceu como Fuhrer, te entrego um belo Steinway para que possas suavizar a tua ira e perceber que no piano, tal como no Mundo, há teclas brancas e pretas e que a música, tal como a vida, é feita de diversidade. Aprenderás que sem elas não consegues tocar blues nem jazz.
- A ti, que Itália conheceu como Duce, te entrego um robusto contrabaixo já que em vida mostraste ser um homem firme e poderás assim segurar o tempo dos teus companheiros de combo.
- A ti, que... ai meu Deus, como é mesmo o nome do país deste?! Aquele país para onde mandamos pessoas com karmas pesados... Bem, enfim, adiante que isto já vai longo. A ti, meu irmão, te entrego uma bateria com muitos tambores para que cada vez que batas num te lembres da tua pesada mão e das torturas que infligiste aos nossos irmãos.
Palavras não eram ditas e uma voz provinciana e meio saloia ergue-se num misto de resolução e subserviência, tão típica daquele tal país semi-desconhecido:
- Ah isho não, meu Shanto Shenor, que eu desde que caí da cadeira jurei que não me boltava a shentar noutra geringonça com pernas e esha coisa da bateria tem lá um banco ou o que isho é onde a gente se ashenta!
- Bem, logo se verá, mas para já eu estou a cumprir ordens e bateria será. Ou isso ou...
- Ah isho também não, meu Shanto Shenor! Deixai bir a mim a bateria ou lá o que isho é. Ashim sempre me lembro de África e do meu tarrafal - argumentou Salazar com um ligeiro, mas disfarçado sorriso. Além de que piano nunca shaberia tocar e o contrabaixo fazia-me logo lembrar daquele shubversivo do Charlie Haden que se foi pôr aos gritos no Cascais Jazz. Ai, cala-te boca que o São Pedro ainda me bem falar na PIDE - pensou Salazar silenciosamente.
Pouco preocupado com estes detalhes, Hitler, como é apanágio da cultura metódica germânica, logo assumiu as rédeas da banda.
- Então mas oh São Pedro e o que é que nos vais pôr a tocar?! Eu aberrações do Monk e doutros comunas que tais recuso-me ter-mi-nan-te-men-te a tocar. Não me venham cá falar em Rounds Midnights nem em Well You Needn'ts... Quanto mais não seja podemos tocar qualquer coisa daquele sacana bolchevique que mandei banir por querer incluir temas do jazz numa ópera... o Ernst Krenek, esse lacaio dos EUA. Ao menos era alemão.
Mussolini, menos afirmativo, limitou-se a um simples:
- Providenciado que o nome do tema não tenha nada relacionado com upside down... É que desde aquela cobardia de que fui vítima em Milão tornei-me um pouco sensível, se me faço entender.
Já o nosso Salazar afirmou timidamente:
- Eu shó não gostaba de tocar a Song for Che... Pronto, são coishas cá minhas, num é... Ao de resto, façham como melhor entenderem e que sheja a bem do nosso kharma colectibo.
São Pedro explicou então que a vida dos três ia ser difícil e com contornos pouco claros:
- Sabeis que vos espera uma vida de muitas privações. Tereis que tocar em clubes com muito fumo, ganhar mal, ser arrasados pela crítica, ser ostracizados pelos media, televisão nem pensar!, andar de terra em terra... tocar com cantoras desafinadas, decorar centenas de temas, ser ilustres desconhecidos... Mas, enfim, assim pagareis o vosso pesado karma. Então, aceitais o desafio?
Hitler, Mussolini e Salazar pensaram, pensaram, pensaram e finalmente o ex-líder do III Reich falou por todos:
- Meu caro São Pedro o que nos propões é inaceitável e se estivessemos nos anos 40 fica sabendo que mandava a minha Luftwaffe contra ti. Mas enfim, se não nos resta outra opção ao menos concede-nos um favor...
Desconfiado, São Pedro virou-se para o pequeno ditador e disse pacientemente:
- Dizei, meu irmão...
Hitler aperaltou-se e soergueu-se ligeiramente para conferir maior determinação ao seu discurso:
- Eu e os meus colegas só temos uma exigência... É que quando o Bush cá chegar o mandes de volta como músico pimba ou como iraquiana da dança do ventre! Ahahahah!!
E assim,logo pela madrugada do dia seguinte os três homens foram enviados de volta ao Mundo para expiar o seu karma.
Durante anos e anos tocaram um pouco por todos os países e um dia passaram por Portugal e o trio apresentou-se algures numa daquelas terras em que as passadeiras vão dar a muros, em que há postes no meio das estradas ou em que os contentores do lixo estão trancados a cadeado. Chegaram com três horas de atraso, depois de o motorista da carripana que os transportava se ter perdido numa bifurcação em que duas setas indicavam o mesmo destino, mas para direcções totalmente opostas. Azar, deviam ter virado à esquerda, mas as suas arreigadas convicções políticas do passado preferiram a direita por unanimidade.
Foi aí, então, que perceberam que o seu karma estava terminado.
O Paraíso esperava-os, mas se ainda assim fosse o inferno não haveria de ser muito pior.