25 de maio de 2005

2050, odisseia no Hot Clube

Lisboa, ano 2050.

Uma patrulha da polícia ronda a Plaza de la Alegría e estaciona a nave ao pé de um prédio do início do Século XX. Dois agentes equipados com capacetes e viseiras saem da viatura através de largas portas de asa de gaivota e dirigem-se para o n.º 39.

Dos confins de uma cave escura saem gritos estridentes e ouve-se o ruído de copos a partir enquanto uma voz longínqua vocifera:

- Sai daqui minha porca! Vai ter com o outro e deslarga-me da mão que não te quero ver mais!

Os dois agentes descem rapidamente as escadas e apontam os identificadores de íris a dois homens. Alonzo confirma os dados e reporta para a central:

- Código 555, tenho dois transexuais em agressão no Hot Clube. Situação sob controlo.

Gonzalo, o segundo agente, dá início ao interrogatório.

- Ora bem, usted chama-se Elisa, certo?
- Certinho e direitinho, senhor agente, tão certo como ser eu mulher criada e despeitada...
- E qual é a sua função nesta casa?
- Ora bem, eu sou a gerente, sou eu que contrato aqui os músicos de transjazz e os DJ.
- E há quanto tempo desempenha estas funções?
- Concretamente desde que o meu falecido marido faleceu.
- E isso foi quando?
- Concretamente quando ele descobriu que eu o enganava com esta aqui... - refere apontando displicentemente para Cláudio.
- O ano!!
- Ai credos, homem de Deus! Em 2045...
- E visto estar ferida deseja apresentar queixa deste sujeito?
- Concretamente não porque ele é meu marido.
- Tem a certeza?
- Pois claro, estou tão certa disso como o Billy Strayhorny [sic] ser bixa!

Todo o ambiente do pequeno clube é kitsch, marcado por paredes cor de rosa e ténues luzes encarnadas. Nas mesas amontoam-se copos que repousam em bases feitas de velhas fotografias dos principais jazzmen que por ali actuaram no início do século passado. Nos braços de Dexter Gordon repousa um whisky meio bebido e o trompete de Thad Jones aponta para um vodka laranja de ar duvidoso. Os velhos discos de 78 rotações foram resgatados do baú da memória do clube e servem agora de bandeja. Numa penada, Elisa transporta em cima de "Now's The Time" três sumos e uma caipirinha bem gelada.

Nas paredes encontram-se projectadas imagens tridimensionais das grandes divas do jazz, em montagens que as apresentam agora num look transformista: Ella Fitzgerald tem uma farta cabeleira verde, Billie Holiday foi convertida ao visual dum conhecido político já na reforma, Sarah Vaughan tem um cabelo tipo Sinnead O'Connor e Dinah Washington surge cravada de piercings nas orelhas e nos lábios. Ao fundo, na zona do palco, Duke Ellington e Count Basie, numa perfeita fotomontagem, encenam um beijo romântico, com muitas luzinhas vermelhas a desenhar um coração que acende e apaga em torno dos seus lábios.

Numa das paredes conserva-se ainda uma ampliação do cartão do primeiro sócio do clube, agora apresentado como uma senhora forte e com um ligeiro bigode em cuja foto segura delicadamente um pequeno cão de colo enfeitado com lacinhos e sinos. No bar, numa das paredes não crivada de nádegas plásticas, sobressai uma fotografia de um senhor onde se poder ler uma dedicatória carinhosamente escrita em baton: «À memória da Lady Jazzé. Foste a maior de todas! És poderosa, pá! Tu mandas!»

Numa máquina ultramoderna de masoquismo a la carte, colocada junto do bar, é possível, a troco de uma moeda de 250 peseteuros, ouvir a voz de Duarte Mendonça, um dos históricos sócios do Hot Clube, num conjunto de afirmações criadas artificialmente a partir das suas entrevistas à rádio e à televisão. Da vasta selecção à escolha dos masoquistas sobressaem: 1) "Seus gandas paneleiros! Veaaaaados!". 2) "Se eu estivesse vivo mandava arrasar isto tudo e soterrava-vos a todos, cambada de panascas invertidos!". 3) "Vocês precisavam era de ser empalados com o saxofone do Charlie Parker!". A preferida, com mais de 50 000 pedidos registados até à data, é uma bem mais simples: «O que é esta merda, seus bois!», em que a sua voz soa com enorme eco e se repete ad eternum.

Mas, chega de pormenores...

Farto de esperar, Cláudio dirige-se aos agentes e roçando a perna em Alonzo pergunta:

- Oh amigas podemos recomeçar o espectáculo ou não? Vá lá...
- Afirmativo. Não quero voltar a ter de vir aqui, estamos entendidos?
- Ai senhor agente venha sempre que quiser... ver a gente...
- Adios.

A música começa subitamente com um DJ a improvisar ao vivo sobre as grandes vozes do jazz. Graças aos enormes avanços na técnica áudio, Frank Sinatra e Tony Bennett cantam "The Man I Love" em dueto, enquanto lá fora, no pátio, os casais dançam alegremente nos seus vestidos de lantejoulas. Segue-se "Cantaloupe Island", com a voz de Parker modulada para entoar a melodia com a palavra bixa. O público delira e aplaude ruidosamente, comprovando que é este o êxito do Verão de 2050.

Tragicamente ninguém se lembra de que o clube comemora neste mesmo ano o seu centésimo aniversário. Mas que importa, o passado é passado e de qualquer forma todo o arquivo histórico arduamente conservado pelo último presidente dos sócios, Eng.º Bernardo Moreira (agora nomeado simplesmente como Binas pelos novos gerentes do franchising de Lisboa do HCP), há muito que foi vendido a peso para comprar sapatos de saltos altos para os empregados do bar...


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