Village Vanguard: 70 anos a "morder" o melhor jazz da Big Apple
O Village Vanguard, a mais antiga catedral do jazz em NYC, completa este ano 70 primaveras. Verdadeira testemunha da história do jazz, assistiu ao swing, presenciou o be-bop, foi palco para o free e para a fusão e ainda hoje lá tocam os mais promissores talentos das novas gerações. Desde 1957 foram gravados no clube mais de 100 discos ao vivo e mesmo com a morte do seu fundador o Vanguard não perdeu a alma nem o ritmo: «Open everyday» continua a ser o lema da casa.
Situado numa pequena cave da Sétima Avenida, no bairro de Greenwich Village, o Vanguard é um dos mais prestigiados clubes de jazz de Nova Iorque e, seguramente, o mais antigo ainda em actividade. Nat Hentoff, reputado crítico de jazz, explica este fenómeno no prefácio do livro que Max Gordon escreveu nos anos oitenta sobre o Village Vanguard: «Os clubes com maior longevidade são aqueles a que vamos mesmo quando não sabemos quem está a tocar lá nessa noite. (...) Ou seja, confiamos que quem quer que seja que gere o clube tenha contratado um artista com classe. Pelo que tenho visto, esse tipo de fé num clube é mais evidente no Village Vanguard do que em qualquer outro que eu jamais tenha conhecido».
De facto, ao longo dos anos o clube tem-se distinguido por uma programação de qualidade, tornando-se uma referência para os habitantes da cidade e para os turistas e melómanos do jazz que diariamente aí entram por um enorme toldo vermelho que se estende pelo passeio até à estrada. E, pelo menos no Vanguard, a tradição parece continuar a ser o que sempre foi, aí tocando regularmente alguns dos jazzmen mais consagrados e dos novos talentos, desde Cedar Walton a Mark Turner.
Max Gordon, o Vanguard e um português
O pai do Vanguard nada tinha, porém, a ver com o jazz e, muito menos, com o seu berço, os Estados Unidos da América. Por estranho que pareça, ou talvez não, o fundador do Village Vanguard é oriundo da Lituânia. Foi aí, perto de Vilna, que nasceu, em 1903, Max Gordon, cinco anos antes da sua família emigrar para os E.U.A., atraída pelo sonho americano.
Criado em Portland, no Oregon, no seio de uma família com parcos recursos económicos, o jovem Gordon teve de estudar e trabalhar em simultâneo, vendendo jornais nas ruas desta cidade até ao dia em que concluiu os seus estudos de literatura no Reed College. Impelido pelos pais a frequentar o curso de direito, Gordon chegou à "cidade que nunca dorme" corria o ano de 1926, mas seis semanas depois o curso era já uma miragem e os seus dias eram passados em Greenwich Village, onde assentou arraiais.
Até à fundação do Vanguard, Gordon acumulou vários empregos, incluindo a revisão ortográfica de cartas numa loja e a redacção de artigos para uma pequena revista de negócios. A entrada no universo dos clubes aconteceria em 1932, em resultado de um encontro ocasional com uma empregada de um clube nova iorquino que, insatisfeita com o seu emprego, lhe propôs a abertura conjunta de um clube. Assim nascia o Fair, em plena lei seca, encerrado pouco tempo depois na sequência de uma acusação forjada de venda de álcool.
Falido e desempregado, Gordon não estava porém derrotado e aguardava apenas a oportunidade de voltar a ter o seu próprio clube. Em Charles Street, Gordon encontrou a cave ideal para o clube que tinha em mente criar, obtendo de um amigo o financiamento necessário para tal empreendimento. Curiosamente, seria este amigo a baptizar o futuro clube: «Village Vanguard».
O clube abriu oficialmente as portas no dia 26 de Fevereiro de 1934, equipado com mobílias e instrumentos comprados a pessoas endividadas em consequência da forte crise económica da época. As mesas e as cadeiras foram improvisadas com barris provenientes de um antigo restaurante que tinha como chefe de cozinha o português Johnny, o qual Gordon contrataria desde logo para tomar conta da cozinha do Village Vanguard.
O jazz estava, porém, ainda ausente e a estreia artística do clube ocorreu com a declamação voluntária de poemas por parte de alguns célebres poetas presentes na inauguração: Maxwell Bodenheim, John Rose Gildea, Joseph Ferdinand Gould. Este "espectáculo" valeu a Gordon a ameaça de encerramento pelos tribunais, sob a acusação de apresentar entretenimento sem a devida licença... Tal não aconteceria, mas a mudança para novas instalações tornava-se agora imperiosa pela necessidade de situar o clube num espaço com duas saídas e longe de igrejas, sinagogas e escolas.
Gordon encontrou esse espaço no número 178 da Sétima Avenida, numa cave onde funcionara um antigo speakeay; o mesmo espaço onde o Village Vanguard se mantém desde 1935 até à actualidade. Durante vários anos, o clube serviu sobretudo de tertúlia de poetas, mais ou menos residentes, mas em 1939, Gordon alcançou grande sucesso com os Revuers - grupo musical formado, entre outros, por Judy Holliday e Betty Comden e com Leonard Bernstein no piano - e passou a ter na audiência celebridades como Fred Astaire.
Gigantes do jazz no Vanguard
O jazz chegou ao Village Vanguard em 1941, através dos blues. Com a fama alcançada pelos Revuers e a sua consequente partida para outros palcos, Gordon necessitava desesperadamente de novas atracções para animar as noites do clube. É neste contexto que um amigo lhe sugere uns tais de Leadbelly e Josh White, a que se somaria Pearl Bailey, em 1943.
Quanto ao jazz começou a aparecer sob a forma de jam-sessions, nos anos quarenta, e com a presença de músicos como Dizzy Gillespie, Art Tatum, Errol Garner, Nat King Cole, Earl Hines ou Dinah Washington, adquiriu maior dimensão no final dos anos cinquenta, com o início das gravações ao vivo e a contratação dos grandes jazzmen da época, e ganhou realmente expressão a partir dos anos sessenta, como revela Max Gordon no seu livro: «Foi bom ter passado para o jazz no Vanguard. Admito que foi difícil no princípio dos anos sessenta. Os miúdos que ouviam música estavam numa embriaguez de rock'n'roll e eu não tinha experiência no jazz. Depois, no final dos anos sessenta e início dos anos setenta, as coisas começaram a acontecer. Comecei a encontrar músicos de jazz, músicos novatos com projectos de futuro: Chick Corea, Herbie Hancock, Keith Jarrett e outros».
Vários foram os gigantes do jazz que tocaram e gravaram no Village Vanguard e dos quais Max Gordon guardou alguns episódios curiosos. Um deles foi Sonny Rollins, que tocou no clube durante dez anos seguidos, quatro vezes por ano, todos os anos. Voltou mais tarde, em 1976, tocou o primeiro set de forma "arrasadora" e já não apareceu para o segundo: «Nunca mais o vi depois desse episódio», escrevia Max Gordon em 1980.
Uma estória semelhante foi protagonizada por Miles Davis, músico que Max Gordon recorda como sendo o «mais difícil de lidar» de todos os músicos de jazz que tocaram no Vanguard: «O que é que se faz numa noite de Sábado quando o clube está cheio e a estrela do espectáculo abandona o palco a meio do concerto porque a sua namorada está embriagada numa espelunca qualquer e lhe telefona a pedir para a ir buscar?». De Charles Mingus, outro vulto do jazz, Gordon reteve a memória de um concerto em que o contrabaixista "aplicou" um soco no estômago de Jimmy Knepper, em pleno palco, só porque o trombonista não estava a tocar o tema como ele tinha escrito... ou do dia em que Mingus arrancou a porta do clube porque no cartaz do exterior faltava a menção «Jazz Workshop» na designação do grupo e o seu nome constava como Charlie e não como Charles.
Jazz gravado ao vivo
Foi o jazz que deu ao Village Vanguard a fama internacional de que goza actualmente, muito especialmente os inúmeros discos que aí foram gravados pelos melhores e mais reputados jazzmen, registos que foram e são autênticos embaixadores do clube um pouco por todo o mundo. Nada menos do que 105 ao todo até à presente data... através dos quais mesmo os mais remotos melómanos do jazz, que nunca tiveram oportunidade de ir a NYC, acabaram por entrar no clube e ter, pelo menos, uma memória musical deste espaço.
Mas mais do que embaixadores do Village Vanguard, alguns destes discos são também verdadeiros embaixadores do jazz, constituindo obras primas. A primeira gravação coube a Sonny Rollins, editada em 1957 com o título «A Night At The Village Vanguard»,
a que se seguiram outros registos de excelência, com destaque para «Sunday at the Village Vanguard» e «Waltz for Debby», de Bill Evans,
«In Person», de Bobby Timmons,
«Live at the Village Vanguard» e «Live at the Village Vanguard Again», de John Coltrane,
«Thursday Night at the Village Vanguard», de Art Pepper e «The State of the Tenor», de Joe Henderson.
E se os maiores recordistas de gravações no Vanguard são Bill Evans (8), Pepper (4) e Kenny Burrell (4), a verdade é que praticamente todos os grandes nomes do jazz encontraram neste clube o palco ideal para os seus registos ao vivo, incluindo, entre muitos outros, Art Blakey & The Jazz Messengers, Betty Carter, Cannonball Adderley, Thad Jones & Mel Lewis, Dizzy Gillespie, Keith Jarrett, Elvin Jones, Hank Jones, Woody Shaw, Phil Woods, Mal Waldron, Tommy Flanagan, Bobby Hutcherson, J.J. Johnson, Dexter Gordon, Joe Lovano, McCoy Tyner e, mais recentemente, Benny Green, Brad Mehldau, Wynton Marsalis e Jason Moran.
Que outro clube que não o Vanguard pode, ou poderá, um dia rivalizar em qualidade e quantidade com esta impressionante antologia/quintessência do jazz?
Village VanguardNYC, 178-7th Avenue South
Concertos às 21h00 e 23h00
Preço médio: 30,00 USD
Endereço URL: http://www.villagevanguard.net/
João Moreira dos Santos
[artigo publicado originalmente na «All Jazz» n. 10]