7 de setembro de 2004

Kenny Garrett em discurso directo

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«Jazz No País do Improviso!» entrevistou Kenny Garrett quando da sua passagem pelo Estoril Jazz 2004. Um diálogo a três, já que contou ainda com o jornalista Serge Baudot, da revista «Jazz Hot». Publicamos hoje alguns excertos desta entrevista.

- Como e quando escolheu o saxofone?

- O saxofone é que me escolheu a mim. O meu pai tocava saxofone-tenor e eu adorava o cheiro da mala do saxofone. Não era tanto o que ele tocava, mas o cheiro da mala. Depois comecei a ganhar curiosidade pelo instrumento e ele comprou-me o meu primeiro saxofone.

- Era um saxofone alto?

- Na verdade o primeiro saxofone que tive foi um saxofone clássico, um saxofone-tenor. Depois um dia o meu pai chegou a casa com um saxofone alto e o alto é definitivamente o que eu toco.

- O seu pai ensinou-o a tocar ou frequentou uma escola?

- Fui para uma escola. Ele ensinou-me a escala de Sol e depois enviou-me para a escola.

- Quem é que admirava no início?

- A minha primeira inspiração veio de Hank Crawford e de Cannonball Adderley, o Cannonball Adderley comercial, música comercial com a qual me pudesse identifcar.

- Não estava interessado em Jackie McClean?

- Não naquela época. Só mais tarde. No início era qualquer tipo de música que eu pudesse entender, o que naquela época era o 'Mercy, Mercy, Mercy', do Cannonball Adderley.

- E tentava imitá-lo?

- Nunca tentei imitar ninguém. Costumava tocar com discos e havia pessoas de quem gostava, mas não os imitava porque eu não sabia que era suposto fazê-lo. É por isso que não os imitava. Mas costumava ouvir os discos e se havia alguma coisa de que gostava tocava.

- Frequentou uma boa escola de música?

- Não.

- Então teve apenas um professor?

- Tive apenas um bom professor chamado Bill Higgins. A escola que frequentei não tinha um programa de música. Na verdade ele criou o programa com o meu pai e queria que eu tocasse na banda. Era esse tipo de escola.

- Quando é que aprendeu a tocar o piano? Foi recentemente?

- O piano sempre esteve lá... Quando estava no liceu eu costumava tocar acordes para depois tocar por cima o que queria tocar no saxofone. Penso que à medida que comecei a ouvir que músicos como Dizzy Gillespie tocavam piano e Freddie Hubbard também, comecei a pensar em tocar.

- E também o ajuda a compôr...

- Sim, definitivamente uso-o para compôr. Mas recentemente fiz um concerto de piano a solo.

- Não fez um disco de piano solo?

- Não, fiz apenas um concerto.

- Mas poderá vir a fazê-lo?

- Há muita gente me encoraja, muitos pianistas já me disseram que eu sou um pianista. No princípio pensei que estavam apenas a ser simpáticos, mas depois vários pianistas começaram a telefonar-me para ter lições. Por isso pensei que eles terão ouvido qualquer coisa em mim. Mas como sabe eu não estudei piano no sentido tradicional...

- Neste momento é muito importante para si compôr?

- Sempre foi muito importante para mim criar. Há esta coisa interessante na capacidade de compôr musica, esta inspiração. Às vezes sento-me e ouço alguma coisa na televisão que acho interessante e pergunto-me por que razão aquela música me faz sentir algo? Por isso vou até ao piano e tento descobrir em que tom está escrita e a partir daí constrúo sons e crio música. É fantástico escrever o que se pensa e é também um veículo para criar um som Kenny Garrett. Coltrane tinha a sua própria música, Duke Ellington tinha a sua própria música, Miles Davis tinha a sua própria música e eu queria ter a minha própria música, queria criar temas e um som.

- Estabelece uma diferença entre a composição e a improvisação?

- Por vezes utilizo a composição como um veículo para a minha improvisação. É como que um campus onde se encontram acordes específicos com cujo som gosto de tocar. Noutros casos é apenas uma canção que não tem nada a ver com improvisação, é apenas música. É diferente.

- Qual é a sua concepção do jazz?

- Para mim é tudo música. Algumas pessoas dizem que o jazz é apenas a tradição. Sempre evoluímos a partir de diferentes géneros no jazz e é isso que eu faço. Toco aquilo que eu chamo jazz, seja beat, seja funk ou hip-hop. É música. Para mim a música é música.

- Mas o jazz é diferente das outras músicas....

- Sim, é diferente mas evoluíu a partir das outras músicas. Os ingredientes e a fundação estão lá. Claro que o jazz é mais complexo do que a música pop, mas a pop também é música. O que importa é o que a música me diz e o que me faz sentir. Muitas pessoas perguntam-me se, por eu tocar tantos estilos diferentes, não estou a alienar o jazz... Não. Foi por isso que toquei com o Miles Davis, foi por isso que toquei com o Sting, por causa da música, porque era um desafio. Foi por isso que toquei com a Jersey Symphony, música clássica, porque era um desafio; não por ser jazz mas porque era música.

- Sei que aprendeu japonês. Tem a ver com um interesse pelo Japão ou pela sua música?

- Bem, se eu não fosse músico queria ter sido um linguista. Adoro línguas. Acho que foi na verdade uma forma de voltar a isso. Decidi aprender japonês porque ouvi alguém no avião a dizer que os americanos são preguiçosos e eu disse: «Uau! Os americanos são preguiçosos? Eu não sou preguiçoso!». Por isso decidi aprender japonês, como um desafio. Mais recentemente tenho estado a aprender coreano e françês. Onde quer que esteja tento aprender um pouco, por que é línguagem, é comunicação. Abre imensos canais de comunicação. Ajuda-me a ser uma melhor pessoa o facto de tentar aprender, mesmo que não seja fluente. Ao aprender a linguagem aprendo a cultura das pessoas.

- E tem interesse na música japonesa?

- Isso veio com a linguagem. À medida que comecei a aprender a língua, comecei a saber mais da cultura e da música e a gostar das melodias e a harmonizá-las de forma diferente. Aconteceu o mesmo com o coreano e com o francês. Eu gosto de melodias. Desde que seja uma boa melodia...

- As experiências com Sting e outros músicos, como é que aconteceram?

- Achei que eram um desafio. Para mim a música é geralmente um desafio. Repare no que eu fiz com a New Jersey Simphony... é um desafio, não é algo que eu faça todos os dias. Foi um desafio que me fez desenvolver o meu nível artístico. É isso que eu tento fazer. No caso do rock'n'roll foi um desafio ver se conseguia colocar a minha voz naquela música e improvisar ou simplesmente entender aquela música. Não é algo que faça todos os dias, mas algo que tento fazer como desafio.

- Como é que encontrou a sua própria voz, o seu próprio som?

- Creio que foi algo em que sempre pensei porque o meu pai, sempre que estava a ouvir rádio, perguntava-me quem era o artista e eu não sabia e então ele dizia-me que toda a gente tinha uma voz. Por isso penso que de forma subconsciente pensava nisso até que um dia percebi que tinha uma voz própria.

- Ainda é possível um jovem saxofonista encontrar o seu próprio som?

- Vai exigir muito trabalho mas será possível. Penso que todas as pessoas têm o seu som, só que algumas pessoas encontram-no mais cedo e outras precisam de uma vida inteira.

- Ainda é possível encontrar novas tendências no jazz, como tivemos o bop, o hard-bop, o funk...?

- As pessoas estão à procura disso, mas penso que isso acontece naturalmente.

- Pensa que uma evolução ainda é possível no jazz ou estamos no fim do processo?

- Não sou a pessoa mais indicada para responder a essa pergunta mas espero que algo aconteça rapidamente para que os jornalistas deixem de me fazer essa pergunta! (risos) O ponto importante é que se alguma coisa acontecer as pessoas não vão dar por isso porque as pessoas estão à espera de algo drástico. Provavelmente apenas vamos ter pessoas a fazer pequenas coisas e no fim teremos o quadro completo. Outra coisa a considerar é que se não houver essa oportunidade para continuar a criar essas pequenas coisas então não sei se poderemos evoluir. Se os músicos jovens tiverem de continuar a ir ao passado (e têm de ir) mas não conseguirem avançar, então não podemos esperar que a música evolua.

- Como é que o marketing está a afectar o jazz?

- Sempre senti que se houvesse um melhor marketing no jazz, se se desse às pessoas a oportunidade de o ouvir, era provável que algumas pessoas o escolhessem. Se o jazz fosse tocado na MTV, teria mais exposição junto das pessoas. O problema no jazz é que não chega às pessoas, mas apenas a uma pequena comunidade que o percebe. Por vezes as pessoas que vêm assistir aos meus concertos dizem-me que foi a primeira vez que assistiram a um concerto de jazz e eu digo «esta é a primeira vez que veio a um concerto de música», porque nós tocamos música. Claro que tocamos jazz, mas tocamos sobretudo música. É uma questão de educação.

- Mas podemos chegar ao ponto em que as editoras é que definirão o repertório em função do que vende?

- Penso que temos de encontrar uma forma de ter o marketing sem desrespeitar a liberdade artística. Penso que temos de mudar a percepção do jazz de uma música de clube para uma música que pode ser tocada perante 80 000 pessoas. Eu posso tocar para 80 000 pessoas em vez de tocar para 8 000.

- Sinto que há muito trabalho positivo de marketing nas capas dos seus CD's. Quem trata isso?

- É minha escolha, não da editora. Talvez fosse diferente se fossem eles [editora] a fazê-lo. Nos meus CD's sou eu que escolho a forma de os apresentar.

- Tem liberdade?

- Tenho.

- O que acha de festivais que se denominam festivais de jazz mas depois têm os Deep Purple e outros grupos de rock?

- São empresários e estão a pensar na forma de cativar os jovens, trazendo a música de que eles gostam. Não sei se deveria chamar jazz; deveria chamar-se festival de música. Se fôr um festival de música então está bem. A questão é que nós no jazz precisamos de exposição. Ponham-nos a nós no mesmo palco dessas bandas em vez de nos porem em pequenos palcos só porque acham que apenas um grupo limitado de pessoas nos quer ouvir. Nós tocamos música e podemos chegar a algumas das mesmas pessoas que vêem a MTV e o VH1. Ponham-nos no mesmo palco que o Sting e não digam que é jazz e então veremos o que acontece.

- Tocou com o Miles Davis em Abril de 1991 em Lisboa e ele morreu em Setembro. Como é que ele estava fisicamente antes de morrer?

- Foi estranho porque às vezes ele estava fraco e depois no fim estava em boa forma.

- A morte dele foi um choque?

- Sim, definitivamente um choque!

- Não havia nada que indicasse o seu estado?

- Bem, ele estava sempre a entrar e sair do hospital. Supostamente ele foi fazer um check-up...

- Era difícil trabalhar com ele?

- Para mim não era difícil porque o Miles deu-me a liberdade de ser eu mesmo, mas com a secção rítmica era difícil...

- Qual foi o melhor disco que fez com ele?

- O Amandla foi um bom disco. Outro foi o Dingo, que gravámos para a banda sonora de uum filme.

- Ainda há muito material gravado ao vivo por publicar?

- Não sei quem decide publicar ou não, mas há um disco recente.

- Qual foi a coisa mais importante que aprendeu com ele?

- A ser apenas eu e continuar a tentar melhorar. Uma vez ele disse-me que eu devia tocar como um principiante. Nessa altura não percebi o que ele queria dizer, mas uma vez estava a tocar com a minha própria banda e então de repente entendi. Basicamente, é manter a música fresca, jovem. Essa foi uma das coisas mais importantes.


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