7 de setembro de 2004

Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó:
O jazz "infernal" dos anos 30!

Actualmente uma linguagem elevada à categoria de arte, o jazz foi recebido em Portugal com criticismo, como confirma um novo documento histórico que encontrámos nas "caves" da Biblioteca Nacional. Nos anos 30, Fontana da Silveira, um reconhecido publicista da época, com ligações ao Estado Novo, editava um argumento para uma peça teatral intitulada «Jazz-Band infernal». Nela se satirizava o jazz como o "Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó" do mestre mascaró, uma música barulhenta dos "pretos". Simples humor, ou visão cultural do regime político da época?

Corria o ano de 1934 quando José Fontana da Silveira deu à estampa um argumento para uma peça de teatro com música original de Artur Júlio Machado, a qual baptizou com o esclarecedor título de «Jazz-Band Infernal».

Esta denominação denuncia desde logo o carácter satírico da peça e encontra, afinal, paralelo nas notícias que desde os anos 20 promoviam o "bota abaixo" do jazz, particularmente um artigo publicado a 3 de Julho de 1927 pela revista «Domingo Ilustrado», o qual informava da vinda a Lisboa de Johann Strauss, com o objectivo de «lançar o seu protesto (...) contra o "jazz" infernal e selvático» (ver All Jazz n.º 3).

Porventura fazendo eco desta visão, a referida peça visava, pois, satirizar, ridicularizar(?), ou tão só fazer humor com os novos e modernos sons que sopravam dos E.U.A. para a Europa, em tudo o que tinham de diferente e característico, colocando para tal em palco uma banda de jazz composta por um trio de músicos, a que Silveira se referia como uma «trempe».

Editada pela Ferreira & Franco, uma editora então sediada na Rua da Madalena, em Lisboa, e que se apresentava publicamente como tendo a «mais completa e variada colecção teatral para artistas e amadores», a principal crítica da peça residia no "barulho" desta nova expressão musical e no seu aparente caos (o tal carácter selvático...), o que fica bem expresso na quadra proferida por um dos músicos/actores intervenientes:

Nesta orquestra tão confusa
Com um bombo assim liró
Ninguém resiste ao barulho
Do txim, txim, pó, pó, pó, pó

A representação tinha início com a entrada em cena do «mestre mascaró», o regente da "jazz-band" em que «tudo toca minha gente», a que se seguia um imediato esclarecimento sobre as origens do jazz, numa quadra que é bem sugestiva e em que fica clara a intenção de o desacreditar:

Veio dos pretos esta moda
Onde não há fá nem dó
Tudo canta, pula e berra
Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó

Talvez por ter uma vincada natureza satírica, o argumento apresentava uma estrutura muito simples e que se repetia sucessivamente. A narrativa desenrolava-se, assim, mediante a entrada em cena de dois músicos da "jazz- band", cada um proferindo sucessivamente uma quadra alusiva ao tema, seguida de outra quadra dita pelo mestre da banda e uma outra entoada em coro, a qual rezava assim:

Do Jazz-Band Infernal
Eis o mestre Mascaró
Tudo toca minha gente
Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó

Escárnio e maldizer

No cômputo global, esta peça mais não era do que um exercício de humor e escárnio sobre os músicos de jazz, a música em si, as bandas e até os clubes em que este era tocado. A propósito destes versavam as duas seguintes quadras, a última da qual devia ser proferida com o olhar do músico/actor posto na plateia, conforme determinava o argumento original:

É rapazes, siga a música
Pró club do Jacob
Que hoje vai endoidecer
Com o txim, txim, pó, pó, pó, pó

Às vossas ordens encontram
Na rua do Fala-Só
O Jazz-Band Infernal
Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó

De facto, as próprias indicações de Silveira para a encenação da peça dão-nos uma ideia clara de como se pretendia ridicularizar ou satirizar o jazz. Assim, o mestre da banda, o mestre «Mascaró», devia vir vestido de «casaca e chapéu alto, trazendo uma batuta descomunal, e fazendo com ela gestos disparatados». Já o primeiro músico devia conduzir «o bombo "Jazz Band" com pratos, castanholas, etc.» e o segundo músico devia conduzir «um cornetim, saxofone ou trombone». A rematar, Silveira dava uma sugestão final para a encenação, indicando que a plateia podia acompanhar os finais do coro com um «"Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó"».

Notoriamente atento às especificidades do jazz e às suas características, ainda que para o satirizar, Fontana da Silveira parece conseguir captar o essencial do seu espírito quando indica, pela voz do mestre mascaró, que esta música é produzida «mesmo sem papel e estantes», rematando que «tudo afina junto ou só, porque basta acompanhar, Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó».

A representação da peça terminava com os músicos a saírem de cena enquanto tocavam, certamente o célebre... «Txim, txim, txim, pó, pó, pó, pó».

Os autores da peça

Mas quem eram, afinal, José Fontana da Silveira e Artur Júlio Machado e até que ponto é possível através destes autores identificar os sectores da sociedade portuguesa mais críticos em relação ao jazz, nomeadamente ao nível político?

De acordo com a Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira (Vol. 28, p. 915), que o apresenta como um publicista (i.e. um escritor) e funcionário corporativo, Fontana da Silveira nasceu em Lisboa, a 28 de Novembro de 1891, tendo desempenhado os cargos de Secretário da Junta de Freguesia da Penha de França, em Lisboa, assim como de chefe dos serviços da filial do Banco Nacional Ultramarino, em Faro, e do Consórcio Português de Pesca e Conserva, na capital.

Paralelamente, publicou entre 1911 e 1963 um considerável conjunto de obras técnicas, históricas e didáticas, e escreveu para teatro com assinalável versatilidade, passando pelos géneros infantil, opereta, policial, comédia, drama e revista. Entre as suas peças contam-se, nomeadamente, «Uma lição», «O Ramalhete», «O Julgamento do Lorde», «Prenda de Anos», «O Sonho do Pintassilgo», «Natal Feliz», A Restauração de Portugal», «A Medalha do Herói», «Dois Crimes Misteriosos», «A Menina dos Contos», «Na Véspera de Santo António», «Milagre de Amor», «T.S.F.», «Três maridos para uma mulher», «Estratagemas de mulher», «O pacto dos 13», «O domador de feras», «O clube dos valentes» e «Efeitos do futebol».

É, porém, através das colaborações de Fontana da Silveira na imprensa escrita que é possível adivinhar o seu alinhamento político, mediante a ligação a publicações conotadas com o Estado Novo, muito particularmente o jornal «A Voz» e «O Primeiro de Maio», este um jornal editado pela F.N.A.T. - Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, organismo criado pelo regime político então vigente. Esta proximidade ao regime acaba por ser também evidente na sua qualidade de funcionário corporativo e na autoria do livro «Histórias da Nossa História», o qual redigiu, em 1940, no âmbito das comemorações centenárias da fundação da nacionalidade, evento promovido pelo Estado Novo.

Fica a dúvida, contudo, se o tom crítico da peça apenas reflectia a posição do autor ou encarnava também uma posição política de um regime que, como outros documentos comprovam, não morria de amores pelo jazz...

Quanto a Artur Júlio Machado, o autor da música de «Jazz-Band Infernal», sabe-se que nasceu em Lisboa, em 1867, tendo-se distinguido como músico, compositor e empresário teatral, encontrando-se múltiplos registos de colaborações com Fontana da Silveira, nomeadamente em peças como «Com a sombrinha: cançoneta para menina» (1935) e «Miss Charl?ston: opereta em três actos» (1936?). É também sua a autoria das canções «O garoto dos jornais: canção para menina ou rapaz», «O velho professor» (1945) e «O flautim», assim como da opereta «Tropa fandanga» (1928). Júlio Machado foi ainda sócio fundador da Real Academia dos Amadores de Música, em 1884, e participou em concertos sob a regência de Alfredo
Keil.

E se não é possível, pelas informações constantes dos arquivos históricos consultados, determinar se esta peça chegou alguma vez a ser representada nos palcos nacionais, ou se, pelo contrário, morreu virgem no papel, já o jazz "infernal" sobreviveu e tem sido presença assídua, por vezes "divinal", em teatros, cinemas e outras salas de espectáculo.

João Moreira dos Santos

[artigo publicado originalmente na «All Jazz» n. 9]


Site Meter Powered by Blogger