5 de setembro de 2004

Ahmad Jamal: «Procuro a revelação»

[«Jazz no País do Improviso!» tem vindo a reeditar algumas das entrevistas realizadas entre 1995 e 1999 e publicadas no jornal «A Capital» e na revista «O Papel do Jazz». Continuamos esta série com a conversa que gravámos, em 1996, com Ahmad Jamal]

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Antes do concerto de amanhã, a realizar na Culturgest, Ahmad Jamal, um dos grandes nomes do jazz ainda em actividade, concedeu a «A Capital» uma entrevista telefónica em exclusivo. Com ele fizemos uma análise sucinta do passado, do presente e do futura da «american classical music» - como o pianista prefere chamar ao jazz ? género musical que tanto impulsionou, influenciando, entre outros, mestres como Miles Davis e Bill Evans. Orientando-se por uma vincada espiritualidade, Jamal mostrou-se visivelmente crítico em relação ao mercado e aos «homens», mas não quanto ao futuro do... jazz.

- Que género de música e discos ouve actualmente?

- Ouço american classical music, que é um termo que adoptei há alguns anos atrás e redefine o termo jazz. Ouço Ar Tatum e tantos outros. Não tenho um padrão definido, ouço muitas coisas.

- Por que recusa a palavra jazz?

- Porque algumas pessoas, quando ouvem a palavra jazz, dizem que não gostam de jazz, mas gostam de Billie Holiday. A palavra está mal definida; o que nós fizemos foi sofisticá-la. É uma palavra muito limitada para aquilo que fazemos musicalmente.

- Se tivesse de nomear um músico-chave na história do jazz, quem nomearia?

- Erroll Garner, o pianista, porque ele era uma autêntica orquestra.

- E um disco chave?

- Os meus próprios e «Flying Home», de Art Tatum, com Tiny Grimes e Slam Stewart.

- Quando fala dos seus discos, refere-se a quais? Ao «At the Pershing»?

- Exactamente. Com Israel Crosby e Vernell Fournier.

- Qual é a sua visão do panorama actual do jazz?

- Tem sobrevivido apesar das tentativas de comercializar tudo e todos os gêneros de música. O que se está a vender hoje não tem nada que ver com música. É claro que há bons músicos e existirão sempre bons músicos clássicos americanos [jazz] porque esta é a verdadeira forma de arte. Só há duas formas de arte que se desenvolveram nos Estados Unidos: a música índia e a american classical music [jazz], que vão continuar a desenvolver-se e a sobreviver. Músicos como Louis Armstrong, Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Art Tatum fizeram a indústria discográfica. Esta indústria não existiria hoje se não fossem os Benny Goodman, Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Nat King Cole.

- Que músicos poderão assegurar o desenvolvimento do jazz no futuro?

- Muitos. Há excelentes músicos a aparecer todos os dias. São tantos que apontar um seria injusto.

- Concorda com Miles Davis quando ele diz que o Ahmad nunca teve o reconhecimento que merece?

- O meu reconhecimento vem de Deus. Não espero reconhecimento por parte dos homens. Não espero nada dos homens, só de Deus. Quem espera algo dos homens ficará sempre desapontado.

- O que procura quando toca?

- Procuro a revelação, uma forma de reflectir a criatividade. Não existem pessoas criativas, como também não há nada de novo debaixo do Sol. O que há é descoberta e é isso mesmo que eu procuro: reflectir a criatividade, que é o melhor que podemos fazer, quer sejamos médicos, advogados ou músicos. O homem pensa que é criativo, mas não é. É por isso que eu procuro a descoberta, procuro ser um receptor. Procuro a revelação musical.

- Porque que é que optou por tocar quase sempre em trio?

- Eu não toco em trio ou em quarteto, ou em quinteto. Toco ou com pequenas ou com grandes orquestras. Não tenho um trio nem um quarteto, tenho orquestras. Toquei com cantoras, com big bands e com todos os formatos concebíveis neste mundo. Toquei por vezes com sete instrumentos como, por exemplo, na sala Pleyel, que esgotou completamente. Por isso, ninguém sabe nunca que formato vou adoptar.

- A transformação que imprime aos temas standards é impressionante e bela. Pode falar-nos disso?

- Todos nós levamos os standards muito para além da sua estrutura original, sobretudo os meus antecessores, como o Art Tatum, Charlie Parker e tantos outros que tiveram o maior do trabalho de extensão e reinterpretação dos temas. Actualmente não toco muitos standards, mas quando o faço não parto já de uma estrutura tão em bruto como eles. A partir da base que herdamos, cada um de nós, intérpretes, leva os standards para além do jamais imaginável pelos seus compositores, sejam eles Jerome Kern, George Gershwin ou Irving Berlin. Eles nunca sonharam que as suas canções seriam interpretadas como o fizeram a Sarah Vaughan ou a Billie Holiday. Esta reinterpretação dos temas clássicos americanos é algo de ímpar no jazz. Quando se ouve o Charlie Parker tocar «April in Paris» está-se em Paris, em Abril. Se se ouve o Charlie Parker tocar «I Could Loose You», vive-se a canção. Quando se ouve o Lester Young a tocar «Polkadots & Moonbeams», está-se lá, podem ver-se os padrões e os raios lunares. A interpretação dos standards para além do imaginável pelos seus compositores é algo únicos nestes artistas. Que melhor interpretação pode haver de «Body & Soul» do que a de Coleman Hawkins»» Eles [compositores] nunca sonharam que aquilo pudesse acontecer à sua canção.

- O que podemos esperar do concerto de Lisboa? Porquê a inclusão de um guitarrista?

- Bem, eu comecei com guitarra no meu primeiro grupo, assim como com percussão. Era um grupo formado por guitarra, percussão, contrabaixo e piano, por isso este concerto é um regresso ao futuro. Tematicamente será composto por 70 por cento de Jamal e 30 por cento de outros compositores.

[entrevista realizada telefonicamente em 6 de Dezembro de 1996 e publicada originalmente no jornal «A Capital», de 14/12/1996]


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