Três propostas de Jazz made in PortugalForam-nos remetidos gentilmente pelos respectivos autores três discos que têm em comum o facto de serem liderados por músicos portugueses, dos quais nos ocupamos no presente post.
Comecemos pelo mais recente,
Kick'n Blow, da autoria dos Desbundixie, grupo que cultiva e procura reviver o tradicional estilo Dixieland e edita agora um primeiro registo ao fim de sete anos de existência.
É desde logo de saudar o facto de em Leiria um grupo de jovens ter decidido lançar mãos a um projecto musical cuja sonoridade e estrutura tem as respectivas raízes no início do Jazz, na Nova Orleães do dealbar do século XX. Um projecto, portanto, muito longe do jazz moderno, sempre mais apelativo para a generalidade dos jovens músicos.
Neste disco dos Desbundixie (um nome feliz para uma jovem banda de Dixieland, diga-se de passagem) encontramos a instrumentação primitiva do jazz, com a presença do trompete, clarinete, trombone, tuba e banjo, estes dois últimos ambos instrumentos que o percurso evolutivo deste género musical fez cair em desuso, em benefício respectivamente do contrabaixo e da guitarra. Acresce o saxofone-tenor, que só seria incorporado nas bandas de Dixieland já mais perto dos anos 20, e que é aqui tocado por César Cardoso, músico com formação na Escola de Jazz Luís Villas-Boas, do Hot Clube de Portugal.
Instrumentos à parte,
Kick'n blow apresenta uma boa selecção de repertório (com um total de 14 temas, entre os quais os clássicos "At the Jazz Band Ball", "Cornet Chop Suey" ou "Clarinet Marmelade") e um jazz, por assim dizer, bem disposto, enérgico, alegre e comunicativo, para o que muito contribui a intervenção vocal de Pedro Santos, que acumula tal função com o dedilhar do banjo.
O Jazz dos Desbundixie é o tipo de som que, pelo que atrás dissemos, pode ser uma excelente porta de entrada no Jazz, conquistando novo público. De facto, a simplicidade e comunicatividade contagiante desta música torna-a acessível mesmo a quem não gosta de Jazz e ideal para acções de formação em escolas, universidades, etc. pelo que reúne as condições para poder extravasar os palcos tradicionais e partir em itinerância, assim as autarquias o entendam e estejam disponíveis para investir na formação de públicos e não apenas na criação de centros culturais para os quais a procura nem sempre é suficiente justamente porque lamentavelmente a educação musical continua a ser uma verdadeira calamidade no ensino primário e secundário, ajudando a produzir público em massa para espectáculos de baixa qualidade musical e artística onde impera o consumo do alcoól e não da música em si.
Ficam dados o recado e a sugestão...
Guida de Palma gravou em Londres, no Fortress Studios, o CD
Atlas, registo que chegou recentemente a Portugal depois de ter sido lançado no Japão e em Inglaterra, e que sucede a
Jazzinho, um bem sucedido projecto de 2003 que vendeu até hoje mais de 20 000 cópias internacionalmente.
Guida de Palma, que fez a sua carreira em Paris e Londres ao lado de projectos tão ambiciosos como Magma, Da Lata ou Kyoto Jazz Massive, apresenta um álbum de rare groove que "respira a leveza dos ritmos populares brasileiros como o balanço do jazz funk", para o qual contou com grandes lendas do free jazz e rare groove da década de 70. Neste projecto não falta mesmo um remix do tema "Dá Tempo ao Tempo", da autoria do Dj/produtor Nicola Conte.
Para a produção, Guida convidou Ed Motta e ambos fizeram questão de usar instrumentos vintage como o Fender Jazz Bass de 1973, a Clavinete D6, Moog ou o Hammond B3, entre outro material raro. Mas a parceria não ficou por aqui: Motta cantou com Guida em "Symmetry", tocou guitarra, percussão e fez back vocals.
Com Guida de Palma surgem em
Atlas músicos convidados como Hamish Stuart, Jim Mullen, Max Middleton e Harry Beckett, para além da sua banda, Jazzinho, composta por músicos ingleses e brasileiros residentes em Londres: Simon Colam (Fender Rhodes, clavineta, orgão Hammond), Marcelo Andrade (flauta, violino), Nic France (bateria), Matheus Nova (baixo) e Anselmo Netto (percussão e bandolim). Esta banda já actuou em salas de referência, como o Jazz Cafe (Londres), Joe’s Pub (NY), Festival de Jazz de Montreal ou o La Paloma (Roma).
Portuguesa de gema, com 16 anos Guida mudou-se de Setúbal para Paris e foi acompanhada pelo génio Jaco Pastorius durante os seus primeiros concertos no clube de jazz Sunset. Abençoada por esta colaboração, começou a tocar em várias cenas europeias e foi voz do famoso projecto de jazz experimental francês Magma na década de 80.
Já em Londres, participou na compilação BEF’s Music of Quality and Distinction ao lado de Tina Turner, Terence Trent d’Arby ou Chaka Khan. Cantou com o saxofonista Ronnie Laws e mais recentemente participou enquanto solista em projectos como Da Lata, Dzihan & Kamien, Boys from Brasil, Kyoto Jazz Massive, etc.
Paralelamente, Guida é engenheira de som (diplomada pela SAE – School of Audio Engineering), colocando o seu cunho na produção musical.
Blue in Green é o primeiro registo da cantora Sara Valente, que surge aqui acompanhada por João Maurílio (piano), Nelson Cascais (contrabaixo), Paulo Bandeira (bateria) e Gonçalo Marques (trompete).
O repertório apresentado radica essencialmente nos standards do cancioneiro norte-americano e nos standards do jazz, com destaque para três temas para os quais Sara Valente escreveu (e em nossa opinião bem) a respectiva letra em português: "Speak no Evil" (Se quero mais), "Blue in Green" (Estranha Estrela) e "Infant Eyes" (Como o Sol).
Gravado num único dia, no Auditório do Seixal, este registo propõe um conteúdo muito equilibrado e ganha alguma inovação ao explorar temas para além daqueles tradicionalmente cantados pelas vozes do jazz. É assim que, adicionalmente aos atrás citados, surgem ainda "Well you Needn't" (de Thelonious Monk), um tema que sabe sempre bem ouvir e cuja letra resulta sempre interessante de seguir, e "Tokyo Blues" (Horace Silver).
Quanto à voz de Sara Valente parece promissora e gostamos de a ouvir sobretudo em "Well you Needn't", "Stolen Moments", "Summer Samba", aqui bem suportada pelo competente contrabaixo de Nelson Cascais, e "Tokyo Blues", tema que Dee Dee Bridgewater tão bem explorou no seu CD de homenagem a Horace Silver. Mais discutível é a inclusão de um fado, "Foi Deus", mas assim foi a vontade da autora e a verdade é que com a sua interpretação muito pessoal acaba por construir uma proposta interessante, embora pouco acrescente a este registo.
De referir que o presente CD será apresentado ao vivo no Onda Jazz, em Lisboa, no próximo dia 19 de Maio e também no Hot Clube, a 17 e 18 de Agosto.