11 de abril de 2008

Charlie Haden esteve detido aqui

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Foto de João Moreira dos Santos

Em Novembro de 1971, Charlie Haden foi interrogado neste edifício, na Rua António Maria Cardoso, onde estava então sediada a PIDE/DGS, na sequência da canção que dedicou no I Cascais Jazz aos movimentos de libertação de Angola, Guiné e Moçambique, episódio que é largamente conhecido e que tivemos oportunidade de detalhar em artigo (ver excerto adiante) que escrevemos para a revista BLITZ a propósito do 35.º aniversário deste mítico festival.

Este mesmo conjunto de edifícios, que já teve vários usos (aí funcionou no início do Século XX a embaixada do Brasil) e assistiu de perto ao desenrolar do 25 de Abril (no dia da Liberdade aqui se barricaram agentes da PIDE e alvejaram mortalmente a tiro 4 pessoas), está agora em vias de se tranformar num condomínio de luxo que, pintado de branco, vem branquear o uso deste imóvel para os futuros ocupantes dos 38 apartamentos e 10 lojas já em fase de acabamentos.

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1910. Joshua Benoliel

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Militares frente à sede da PIDE-DGS (25.04.74)

Com efeito, não só não se albergou nestes edifícios o que podia ser o museu do 25 de Abril, como no site do referido empreendimento jamais são referidas as torturas (e mortes) que nele tiveram lugar e nem sequer a sua ocupação pela PIDE, preferindo-se falar unicamente na sua ligação história ao Duque de Bragança.

Já agora, importa perguntar a quem de direito qual será o destino da lápide que durante anos residiu neste edíficio com o propósito de homenagear as vítimas da PIDE no 25 de Abril? Será despejada pelos novos inquilinos?

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O caso Charlie Haden


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(...) Finalmente o “pai” do Free-Jazz subiu ao palco, acompanhado por Dewey Redman (saxofone tenor), Charlie Haden (contrabaixo) e Ed Blackwell (bateria), e foi, na opinião de Leonel Santos, “caótico, demolidor, free!”, embora os seus sons “ruidosos” tivessem provocado nova debandada entre o público. Tito Lívio caracterizaria no jornal República a música de Coleman, considerando-a um “Jazz sem regras, severo, anti-superficial, o destruir das linhas harmónicas, a arritmia”. Francisco Pinto Balsemão era um dos notáveis espectadores deste concerto e logo após o mesmo exprimia à RTP a sua opinião: “Gosto muito mais do Ornette Coleman do que do Miles Davis, sem comparação. Não é uma música de bater o pé, mas é uma música muito mais livre e portanto permite, a quem é artista, como ele, dizer muito mais, e a mim disse muito”.

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Ornette e Haden no I Cascais Jazz. Foto de Augusto Mayer

Esta declaração – para ler nas entrelinhas, como quase tudo o que a imprensa publicava antes do 25 de Abril – tinha a ver com o acontecimento extra-musical que ficou para sempre ligado à história do Cascais Jazz, quando a dado momento Charlie Haden se curva para o microfone usado para amplificar o seu contrabaixo e dedica o tema «Song for Che» aos movimentos de libertação dos negros em Angola e Moçambique. “Quando o Charlie Haden leu a mensagem as pessoas nas bancadas levantaram-se como uma mola e ergueram os punhos em saudação comunista”, recorda João Braga. Entretanto à frente de uma dessas bancadas pendiam já dois panos com as inscrições “Guiné Livre” e “Abaixo Guerra Colonial”, que uma fotografia inédita de Augusto Mayer permite agora revisitar pela primeira vez.

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Foto de Augusto Mayer

No exterior do Pavilhão do Dramático estavam já posicionadas duas camionetas com polícia de choque e pouco tempo depois o Comandante da PSP de Cascais ameaçava João Braga, ordenando o fim do espectáculo. “Ele disse-me «Acabem já com isto ou faço entrar esta malta!”», ao que eu respondi: Faça favor, o palco é todo seu, mas cuidadinho que as cadeiras não estão fixas ao chão…” O espectáculo prosseguiu.

A imprensa “oficial” ignorou por completo o incidente (a censura não perdoava…), à excepção do Diário de Lisboa onde, nas entrelinhas de um artigo de José Jorge Letria (que entrevistara Haden nas vésperas da sua actuação e o questionara sobre a possibilidade de o Jazz poder ser uma forma de actuação política…), se podia perceber que algo mais do que Jazz se passara no Dramático: “Quem é que não sentiu um nó na garganta com a violência (negra) do quarteto de Ornette Coleman? Quem é que não estremeceu ao ver o punho cerrado de Dewey Redman (…) bem erguido no ar, no final da sua actuação? E éramos todos os acusados”

Este evento não deixou porém de ser noticiado nos órgãos clandestinos, como a Rádio Portugal Livre (emitida em onda média a partir da Argélia) e o jornal Portugal Democrático, que informava que “No Festival de Jazz de Cascais um dos músicos americanos dedicou um número aos Movimentos de Libertação de Angola e Moçambique. Apesar de falar em inglês, as suas palavras foram traduzidas pelas pessoas que entenderam e a sala quase veio abaixo com os aplausos. No final do espectáculo, ao regressar ao seu camarim, era ali aguardado por agentes da PIDE que o intimaram a deixar imediatamente o País. Foi forçado a seguir de Cascais para o aeroporto e embarcar no mesmo dia”.

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Foto de João Moreira dos Santos

Na verdade Charlie Haden foi levado, sim, mas para a sede da PIDE/DGS (Direcção-Geral de Segurança), na Rua António Maria Cardoso. No auto de declarações o músico é referido como membro do quarteto de Hornet Coleman [sic] e a argumentação do interrogatório não podia ser mais cínica, tendo o músico sido “Convidado a declarar se foi bem recebido em Portugal e aqui achou ambiente favorável à sua visita”, ao que Haden respondeu afirmativamente, e se “uma vez que foi bem recebido no nosso País, qual o motivo porque já durante a viagem no avião abordou assuntos referentes aos movimentos africanos desfavoráveis a Portugal e durante a sua actuação em Cascais dedicou uma canção escrita por ele próprio intitulada “canção para o CHE”, aos movimentos africanos de independência (…)”. De acordo com o auto de declarações, Haden mostrou-se “arrependido pelo acto que praticou por desconhecer que afectava o país onde o fazia”.

Mas enquanto estava na sede da DGS Haden tinha algo na algibeira… como Paulo Gil recorda agora: "Disse-me o Charlie Haden que a gravação do tema «Song For Che», realizada em Cascais naquela noite, se encontrava na algibeira da sua gabardina que vestiu quando foi detido pela PIDE. Como, na rua António Maria Cardoso, a gabardina foi pendurada num cabide existente no gabinete em que foi interrogado, e só depois disso é que o revistaram, a PIDE nunca confiscou a gravação...” E foi assim que em 1976 Charlie Haden pôde incluir parte desta gravação no disco Closeness (no tema «For a Free Portugal»), que Paulo Gil e Rui Neves importaram para Portugal quando o primeiro era director geral do Departamento de Discos da Valentim de Carvalho.

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Entretanto, chegavam também à sede da DGS Luís Villas-Boas e João Braga, que a PIDE fora buscar de madrugada, tentando este último servir de moderador entre os agentes e Haden: “O Inspector Glória dizia-me «O gajo tem de levar uns tabefes» e eu disse que eles é que sabiam, mas que sabia como eram os tabefes da PIDE e que quando ele chegasse a Londres teria as marcas para mostrar à imprensa... Ele perguntou-me se eu achava então que ele devia ser condecorado e eu disse que não, que achava que eles deviam ir entregá-lo a casa do Adido Cultural dos EUA em Portugal sob pretexto de ele não ser digno dos calabouços da PIDE…”

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No dia 22, Domingo, Haden foi assim levado sob escolta a casa do Adido Cultural da Embaixada do EUA e daí seguiu para o Aeroporto de Lisboa, de onde partiu para Londres. Quanto a Villas-Boas e João Braga viam-se agora confrontados com a decisão da DGS em cancelar o segundo dia do Festival, intimando-os a devolver o dinheiro dos bilhetes já vendidos, solução logo rejeitada por ambos. Ao fim de várias horas de argumentação os agentes da DGS exigiram finalmente 500 livre-trânsito para autorizar a prossecução do Festival e às 13h00 desse dia Villas-Boas e Braga abandonavam as instalações para ir assistir ao jogo de futebol Portugal-Bélgica, acompanhando Dizzy Gillespie, que exigira ver Eusébio jogar.


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