Foto de João Moreira dos Santos
Regressamos à Festa do Jazz do São Luiz, agora para uma apreciação crítica do seu simbolismo e importância.
Há seis anos que o São Luiz vem realizando ininterruptamente esta Festa do Jazz (com direcção artística de Carlos Martins e direcção de produção de Luis Hilário), o que é por si só um feito assinalável, considerando todo o difícil contexto político e económico que se viveu em Lisboa nestes últimos anos.
Ignoramos, de facto, o que permitiu à Festa do Jazz sobreviver às crises orçamentais do seu financiador - a Câmara Municipal de Lisboa - mas não será difícil vislumbrar entre as razões para tal a elevada qualidade do evento, a grande adesão do público e o forte envolvimento das escolas de música a nível nacional.
Num país em que raramente a exacerbação dos egos e a salvaguarada das quintinhas e capelinhas próprias deixa espaço à expressão do reconhecimento público que é devido ao trabalho bem feito pelos pares, JNPDI! quer aplaudir um trio que tem vencido todas as edições da Festa do Jazz: Jorge Salavisa (director do São Luiz), Carlos Martins e Luís Hilário. O Jazz precisa desta Festa do Jazz e a Festa do Jazz precisa deste trio.
Luís Hilário, Jorge Salavisa e Carlos Martins. Foto de João Moreira dos Santos
Mas o que é afinal a Festa do Jazz?
Podemos dizer, para começar, que é algo que era impensável até há poucos anos atrás e muito mais quando nos anos 40 Luís Villas-Boas começou a divulgar, de forma profissional e consistente, o Jazz entre nós. De facto, esta Festa do Jazz, que é uma celebração da liberdade de expressão artística e individual, era obviamente inviável na vigência do Estado Novo governado por quem há um par de anos alguns portugueses elegeram como "O" Grande Português (poderá ser grande quem reduz os outros à sua mínima expressão?).
A Festa do Jazz tem basicamente três vertentes.
A primeira, é a de divulgação e estímulo de novos talentos, o que faz mediante a organização de um concurso ao qual se apresentam grupos representantes das escolas de música que actuam na área do jazz. Daqui sai um combo vencedor e prémios de mérito para os melhores instrumentistas.
A segunda, é a organização de masterclasses dirigidas fundamentalmente aos alunos das escolas, os quais afluem de praticamente todo o país (incluindo ilhas) e têm assim oportunidade de conviver com músicos profissionais diversos, aos quais em condições normais não teriam em princípio acesso.
A terceira, é a divulgação e estímulo do que de melhor se faz no jazz nacional, convidando os músicos nacionais a mostrarem ao público o seu trabalho (discográfico, temas, etc).
Paris, 1956.
Talvez esta nossa Festa do Jazz possa recolher alguma experiência deste salão, convidando para o júri, em próximas edições, uma grande personalidade do jazz mundial, tal como sucedeu em 1950 em Paris, com a presença de Roy Eldridge. Tal não desmerece o júri nacional, que pode e deve continuar a existir e a fazer o bom trabaho que tem feito, mas permite que os novos talentos saídos das escolas beneficiem da exposição a músicos que estão no topo do jazz (com toda a exigência que tal acarreta, mas também partilha de experiência), podendo inclusivamente os melhores de entre estes começar a construir nesta Festa uma carreira internacional.
É um desafio que deixamos ao trio organizador, sendo certo que ao longo dos anos os músicos portugueses têm facilitado a tarefa de envolver nesta Festa grandes nomes do jazz pois têm tocado com músicos como Lee Konitz, Dee Dee Bridgewater e Chris Cheek (Orquestra de Jazz de Matosinhos, Pedro Madaleno e André Fernandes), Dave Liebman (Sérgio Pelágio), Kirk Lightsey (Carlos Barretto), Benny Golson (Pedro Moreira e Bernardo Moreira) ou Freddie Hubbard (Big Band do Hot Clube de Portugal), etc.
Outra particularidade do Salon du Jazz era a sua dispersão regional (claro que estamos a falar dum país com outra dimensão e tradição musical) e o facto do concurso de amadores ser transmitido pela rádio, o que permitia deixar um arquivo para memória futura e ao mesmo tempo dar maior visibilidade aos jovens músicos, ajudando-os desde logo a criar laços com o público.
Qual a importância da Festa do Jazz?
Total. Digamos que este evento representa a consagração e institucionalização do Jazz em Portugal e, para os jovens músicos, é muitas vezes não só o primeiro palco, mas também a oportunidade de serem expostos à crítica dos seus pares e de um júri independente e experiente, o que é fundamental para lhes devolver uma imagem da sua evolução e do estado da sua arte.
Mas, paralelamente, a Festa do Jazz do São Luiz é também importante para os músicos já profissionais (que têm oportunidade de dar a conhecer o seu trabalho a uma audiência exigente e de apresentar novos registos discográficos), para os produtores e promotores de jazz (que ficam a par das novas tendências e dos novos talentos), para as editoras (que têm nesta Festa o melhor ponto de encontro com os seus clientes) e, claro, para o público (que tem oportunidade de em apenas dois dias conhecer o que de melhor se faz por cá no jazz).
Foto de João Moreira dos Santos
Na verdade, esta Festa do Jazz tem-se constituído como a grande mostra do jazz nacional e isso é deveras importante e também um inequívoco sinal da importância que o jazz vem ganhando nos últimos anos em Portugal. Talvez cheguemos um dia a ter uma exposição em que escolas nacionais e estrangeiras, editoras e lojas de instrumentos possam edivulgar os seus produtos e serviços. Urge também encontrar pontos de união com outras formas de arte. Em tudo isto a Festa do Jazz pode ser um importante pivot.
A Festa do Jazz revela novos talentos?
A resposta é afirmativa e alguns dos talentos que se deram a conhecer nas várias edições deste evento são actualmente músicos profissionais ou em vias disso.
De resto, a 6.ª Festa do Jazz revelou pelo menos seis instrumentistas cujo talento foi premiado pelo respectivo júri.
Graciano Caldeira (guitarra) - Conservatório Escola das Artes da Madeira
Foto de João Moreira dos Santos
Foto de João Moreira dos Santos
Iuri Gaspar (piano) - Escola de Jazz do Barreiro
Foto de João Moreira dos Santos
André Carvalho (contrabaixo) - Academia de Amadores de Música / Hot Clube
Foto de João Moreira dos Santos
Miguel Moreira (bateria) - Hot Clube de Portugal
Foto de João Moreira dos Santos
João Capinha (sax-ato) - Academia Municipal das Artes da Nazaré
Foto de João Moreira dos Santos
Teresa Macedo (voz) - Academia de Amadores de Música
Em face dos talentos que vimos surgir nesta Festa do Jazz e também daqueles que já são conhecidos do público (e desde há um par de anos que vimos defendendo em vários programas de rádio e televisão que Portugal tem neste momento um verdadeira geração de ouro em termos de músicos de jazz), é caso para dizer que se as nossas empresas tivessem tão bons gestores como os músicos de jazz que existem presentemente entre nós, Portugal não estaria na cauda da Europa em produtividade.
Então, talvez o mundo do jazz, com todas as suas fragilidades e improvisos, tenha uma lição a dar à comunidade, ou pelo menos um exemplo: como fazer muito com poucos recursos. O segredo está em parte na motivação das sucessivas gerações para irem mais longe, construirem um nome (ou uma marca, como agora é comum dizer-se de tudo) e superarem-se a si mesmas.
Tudo isto sucede num ambiente competitivo em que os trabalham menos e estudam menos ficam para trás, superados pelos seus pares, e num contexto muito exposto à concorrência, sendo que só os músicos mais profissionais conseguem atrair, à partida, homólogos estrangeiros de renome para com eles gravarem ou tocarem. Mais: tudo isto sucede sob o amplo excrutínio dos media e seus críticos epecializados em jazz, capazes de alavancar ou cilindrar uma carreira (veja-se o infeliz caso duma cantora bem conhecida cujo mais recente disco foi arrasado numa crítica do jornal Público).
O músico de jazz português, tal como sucede em todo o mundo, tem pois de ser muito bom para chegar vivo ao fim desta autêntica barragem de fogo.
Que direcções pode tomar esta Festa do Jazz?
Foto de João Moreira dos Santos
Na nossa opinião a Festa do Jazz do São Luiz tem ainda um largo campo de expansão.
Pela nossa parte gostaríamos, no futuro, de a ver a desenvolver uma vertente pedagógica dupla, actuando junto das crianças (e hoje em dia há dezenas de formatos pedagógicos para trocar o jazz por miúdos - vejam-se as acções realizadas nos EUA e também a que a Gulbenkian realizou no ano passado) e junto do público que só não gosta de jazz porque nunca lhe foi traduzido e explicado. Seria importante se parte das receitas pudessem ser canalizadas para criar um bolsa de estudo para os mais talentosos ou estudiosos.
Ainda no campo das escolas, era importante conseguir assegurar a representatividade de todas as regiões, para o que é urgente envolver o Algarve, Açores e Alentejo (sendo que a constituição da licenciatura em Jazz da Universidade de Évora deve a breve prazo torná-lo possível).
Para além destas actividades e das anteriormente referidas (júri internacional, ampliação do leque de parceiros, etc), gostaríamos que uma editora abraçasse este projecto e editasse anualmente em disco o combo vencedor e os instrumentistas premiados, o que não é difícil nem muito dispendioso, mas é certamente um estímulo para estes jovens músicos e para o jazz em Portugal.
Gostaríamos igualmente que a comunicação social, nomeadamente a RTP, cobrisse este evento, colocando-o no mapa audiovisual com a visibilidade que merece. E já que falamos em media, a Festa do Jazz pode também ser o pivot ideal para potenciar um maior envolvimento por parte destes. Deixamos aqui a sugestão de se instituir um prémio que distinga anualmente a melhor reportagem/artigo/peça dedicada ao jazz ou seus praticantes.
Seria desejável ainda criar um espaço para os produtores e programadores de jazz, espaço esse que serviria como ponto de encontro entre a oferta (músicos) e a procura (festivais, clubes, teatros, etc). Para tal, a organização envidaria esforços no sentido de garantir que pelo menos os programadores dos teatros ligados em rede ao Ministério da Cultura se deslocassem a Lisboa nestes dois dias da Festa e se dispusessem a conceder aos músicos a oportunidade de lhes exporem o seu trabalho. Ao fazer isto, a Festa do Jazz estará não só a criar mais oportunidades de trabalho para os músicos de jazz, mas essencialmente a consolidar a divulgação e implantação do próprio jazz a nível nacional.
Nada disto diminui, porém, o excelente e extraordinário trabalho que a Festa do Jazz do São Luiz tem feito ao longo dos anos e que é o mais difícil: pôr de pé um evento credível, de qualidade e de renome. Mas na verdade, se os músicos não cessam de querer superar-se, por que não havemos de exigir o mesmo de nós, nós que somos promotores e divulgadores do Jazz?
Podem contar com JNPDI! Enquanto houver Festa do Jazz, cá estaremos para a divulgar e apoiar, afinal este é o grande evento do Jazz em Portugal.
4 Comments:
Caro João Moreira dos Santos, estive a ler com todo o interesse o seu post sobre a Festa do Jazz do São Luiz 2008 no seu blog e fiquei muito entusiasmado por ao fim de seis anos a Festa ter provocado tão exaltante e interessante comentário. Como você diz esta é a Festa nacional do Jazz. Mas parece que só agora "acordou" os espiritos à nossa volta. Claro que estas coisas demoram o seu tempo, não é? É gratificante ler os seus escritos e um alívio não ter que ser nenhum de nós, eu próprio, Jorge Salavisa ou Luis Hilário,a escrever sobre a "nossa" própria Festa ( que não é nossa até porque o segredo mais bem guardado da Festa está com os músicos que a fazem). Mas aprecio muitos dos seus comentários que não têm nada de exagerado quando relata os acontecimentos dentro deste grande acontecimento nacional. Os seus comentários são certeiros e as suas sugestões aliciantes. Como director artístico tenho presente que a próxima festa, a sétima, terá que ter algumas alterações e algumas direcções já estão a ser tomadas. Uma delas será a de ter um encontro informal com personalidades ligadas ao meio para fazer um balanço e discussão de novos caminhos. Gostaríamos de poder contar com a sua colaboração e entusiasmo. obrigado e um abraço,
Carlos Martins
Caro Carlos Martins,
Conte comigo e com o JNPDI! Será um prazer participar nesta grande Festa do Jazz nacional.
E parabéns mais uma vez por este importante edifício pedagógico e de divulgação do jazz.
Abraço,
João Moreira dos Santos
Boa noite João Moreira dos Santos. Aproveito para deixar aqui os meus parabéns á organização da Festa do Jazz assim como votos de que as futuras edições possam ser pelo menos tão interessantes e mobilizadoras como têm sido até aqui.
Posto isto, queria, não corrigi-lo, mas informá-lo de que nem só no ano passado a Fundação Calouste Gulbenkian desenvolveu, na área do Jazz, trabalho pedagógico dirigido aos mais novos. Ao longo deste ano um grupo de formadores, dirigidos por mim, tem desenvolvido uma série de sessões intituladas “Viagem ao Mundo do Jazz”, sessões essas integradas no ciclo “Descobrir a Música na Gulbenkian”. Um público entre os 6 e os 17 anos tem passado pelo Auditório 3 e tomado (na esmagadora maioria dos casos) o primeiro contacto com o Jazz. Esta actividade está anunciada no programa de actividades da Fundação que, estou certo, conhecerá. Teremos imenso gosto em que assista a uma sessão.
Continuação do bom trabalho
José Menezes
Caro José Menezes,
Terei todo o gosto em assistir a uma dessas sessões, de que não tinha conhecimento, provavelmente por culpa minha, que raramente passo pelo site da Gulbenkian que, também, diga-se em abono da verdade, tirando o Jazz em Agosto não toma qualquer iniciativa junto de JNPDI! para divulgar as suas actividades, e são várias e de qualidade.
Grande abraço.
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