Luciana Souza: a voz da nova bossa nova
Foto: Kwaku Alston
Foto: Kwaku Alston
No dia em que JNPDI! completa 4 anos de existência publicamos a primeira parte de uma longa entrevista com a cantora Luciana Souza, que acaba de lançar um novo disco na editora Universal: The New Bossa Nova.
JNPDI!: Como é cantar uma bossa nova suave num mundo agressivo, violento e onde as cidades são muito barulhentas? Não é um pouco como sussurrar no meio de uma multidão alienada?
Luciana Souza: Pois é, que efeito maravilhoso esse! Você não atinge todas as pessoas e nem é essa a intenção. A intenção é de buscar as pessoas que realmente estão procurando esse tipo de experiência e que desejam, nesse barulho todo, buscar um espaço de introspecção. É isso que eu acho que é uma das grandes coisas que a bossa nova ofereceu.
Na minha opinião o que acontece antes da bossa nova é o samba, que é uma experiência comunitária no Brasil, uma experiência de exuberância, de dança, de estar nas ruas, de beber cerveja… É uma coisa muito forte que nós temos.
No entanto, o que se segue depois do samba e depois de cantar alto é uma pessoa como o João Gilberto pegar no microfone, trazer perto e basicamente sussurrar. A profundidade, a subtileza da maneira como ele canta e como ele se expressa – o ritmo muda um pouquinho – é uma coisa muito refinada. Não é que eu esteja almejando ser uma coisa refinada; é que eu gostaria que as pessoas escutassem com cuidado. Acho que existem pessoas no mundo hoje em dia que buscam exactamente essa experiência, que estão cansadas desse bombardeamento e dessa informação.
JNPDI!: O que é exactamente este disco The New Bossa Nova? É pegar nos temas do Sting, do Leonard Cohen e de outros grandes compositores contemporâneos do rock e da pop e reinterpretá-los ao som da bossa nova?
LS: É uma roupagem. A primeira reacção que eu tive quando tentei fazer isso foi uma reacção de roupagem, de tentar vestir os temas com a estética da bossa nova. Acho que a grande coisa que a bossa nova oferece, independentemente do ritmo e da instrumentação, é essa questão meditativa e para mim, que leio muita poesia e que trabalho muito com poesia, o que eu gostaria de oferecer às pessoas é essa leitura poética dessas canções.
Quando o James Taylor gravou a sua própria canção tinha um coro de várias pessoas cantando junto, tinha instrumentos electrónicos… Nós fazemos uma versão completamente despojada, quer dizer, você tira todos os excessos que tem e apresenta a poesia, a melodia e essa harmonia simples.
Essa música sobrevive a mim tocando sozinha no violão, como o João Gilberto faz com as canções do Jobim. Se sobrevive a mim é porque tem essa linha de contraponto de voz, harmonia e poesia e é basicamente isso que eu quero apresentar às pessoas. Em muitos dos meus discos anteriores, especialmente nos Duos Brasileiros, é essa a intenção: fazer um recital de música brasileira só com voz e violão. Este disco é um pouco mais estilizado, mais produzido, mas a intenção é a mesma: que a pessoa escute a poesia, escute a melodia e escute essa canção.
JNPDI!: É possível pegar em virtualmente qualquer tema, de qualquer compositor, e transformá-lo em bossa nova?
LS: Sabe que não?! [risos] É uma coragem que eu tenho de tentar submeter essas canções a isso e cabe a vocês críticos e ao público dizer se sim ou se não. Eu acredito que sim e por isso coloquei o meu nome do disco. Acredito nessas canções. Agora… começámos com 80/90 canções e eu tocava todas e ia seleccionando, muito por causa da questão do poema, de me identificar com o poema e de poder cantá-lo ou não.
O que eu queria também era que todos os temas do disco tivessem uma coerência e todos os temas do disco lidam com versões ou manifestações do amor na vida de uma pessoa, todas essas encarnações do amor.
JNPDI!: O que é a bossa nova para si?
LS: Eu carrego dentro de mim, do meu DNA, essa história da bossa nova porque sou filha de dois bossa novistas que não foram famosos, mas o meu pai nasceu na mesma cidade de João Gilberto, em Juazeiro da Baía, cresceu com João Gilberto e foi para o Rio de Janeiro em 1958, onde estava João Gilberto, ficou amigo dele e de Jobim e gravou na primeira gravação de «Chega de Saudade», em 1958.
Eu cresci ouvindo essa música. Até hoje se o meu pai pega um violão para tocar ele não toca samba, toca bossa nova. Então o soundtrack da minha vida, quando eu penso em tudo o que eu já passei, é esse ritmo. Para mim, é um estilo, é um ritmo, é uma forma de cantar, que é muito simples e, no caso do João [Gilberto], muito afinada, muito colocada e com variações rítmicas muito profundas e delicadas. Não é como improvisar como eu improviso como quando canto jazz; é uma coisa de pegar uma frase e movê-la um pouquinho, uma coisa milimétrica que dá um outro sentido à coisa.
É um estilo e é uma forma de introspecção, meditativa.
JNPDI!: Como foi crescer nesse ambiente musical?
LS: Maravilhoso… Maravilhoso e, de uma certa forma, até perigoso no sentido de que o meu pai e a minha mãe têm tão bom gosto musical e são tão críticos que exerceram sobre mim e sobre os meus irmãos um filtro. Eu cresci ouvindo James Taylor e Joni Mitchell, mas quando já era adolescente porque em menor, apesar das minhas irmãs escutarem, eu não podia escutar; só podia escutar música boa, música de qualidade. Hoje em dia meu pai acha essa música uma música de qualidade porque ele aprendeu através de nós a apreciar essas coisas.
Esse ambiente para mim foi riquíssimo. Crescemos sem televisão, com muitos filhos e tínhamos em casa dois pianos e músicos maravilhosos passando. O Milton Nascimento passava para comer, sempre músicos muito pobres, e Hermeto Pascoal é meu padrinho de nascimento. Tive uma infância muito rica musicalmente e exposta a coisas para as quais não existe escola.
JNPDI!: Como é que na vivência íntima da música brasileira lhe surgiu o interesse pelo jazz?
LS: Inevitável… inevitável porque o meu pai sempre trazia para casa discos de jazz, desde big bands, como as de Stan Kenton e Bill Holman, a muito Sinatra, muita Ella [Fitzgerald], muita Billie [Holiday]. Ele realmente gostava, não entendia nada das canções (o meu pai não fala uma palavra em inglês), mas entendia o espírito.
Depois, cresci a ver os filmes da Broadway, esses grandes musicais onde você ouvia as canções, os temas e os arranjos, e com a presença de Hermeto [Pascoal] em casa e de outros grandes músicos, como César Mariano (que foi marido de Elis Regina), que passavam pela casa e sentavam no piano e tocavam. E também indo a concertos. O meu pai levava a gente a muitos concertos, quando estávamos em São Paulo. Todos os Domingos.
Portanto o Jazz foi para mim inevitável, mas como cantora foi uma escolha. Quando entrei na Berklee para fazer o meu bacharelato fiz uma opção: podia entrar como cantora ou estudar outra coisa. Preferi estudar composição porque achei que cantar podia cantar sempre, mas composição – estudar e aprender a analisar a teoria e a harmonia – só poderia fazê-lo na escola. Essa opção foi muito boa para mim porque me educou como músico e por isso hoje em dia considero-me uma vocalista. Vocalizo o que sinto como músico.
JNPDI!: Como foi esse percurso do Brasil até aos EUA, concretamente até à Berklee?
LS: Tenho um irmão que estava na Berklee a estudar score para cinema e escreveu-me uma carta a dizer que “esse lugar é o lugar para você, você é uma pessoa séria”. Consegui uma bolsa de estudo total e fui. Voltei para o Brasil depois de quatro anos e aí fui fazer o mestrado no New England Conservatory of Music.
JNPDI!: Sendo natural do Brasil, mas vivendo nos EUA não sente muito o contraste entre estes dois mundos, um de pobreza e outro de abundância?
LS: Sim, mas isso é difícil para qualquer ser humano do mundo. Não consigo separar-me de África, por exemplo. Eu sou uma cidadã do mundo hoje em dia: vivo em Los Angeles, mas já vivi em Nova Iorque, em Boston e no Brasil e viveria na Europa se fosse possível, que adoro.
Tenho, claro, como brasileira, um sentimento profundo de pena das pessoas no Brasil, de revolta, porque socialmente é uma injustiça, é uma coisa chocante para todos nós. Mas sinto que isso é um problema que nós temos no mundo hoje em dia, não é um problema só do Brasil.
É difícil viver num país tão abundante, mas foi uma escolha que eu fiz porque o que eu gostaria de fazer musicalmente não seria possível no Brasil: viver uma carreira de académica, porque eu sou professora de música, e viver uma carreira onde eu posso fazer exactamente o que eu quero fazer musicalmente.
No Brasil isso não é possível a não ser que você seja Caetano Veloso ou Gilberto Gil. No Brasil você tem que estar num nível em que realmente você pode exercer influência ou conseguir oportunidade de fazer como artista exactamente o que você quer.
Nos Estados Unidos você consegue viver muito simplesmente, mas com muita dignidade, fazendo exactamente o que você quer e essa foi uma escolha que percebi, graças a Deus, muito cedo na minha vida. Então resolvi optar e deixar a minha família e o meu país, mas viver num país onde vou conseguir exprimir-me musicalmente e onde posso fazer projectos desde música contemporânea até música de câmara, jazz, música pop, o que quiser.
As pessoas comentam muito comigo que para mim não existe estilo… Claro que existe estilo. Estou muito consciente de que existem estilos distintos, mas a minha paixão pela música, a minha curiosidade e a minha coragem fazem-me negar isso. Reconheço os estilos e estou consciente deles, mas saber que é um estilo diferente não vai me impedir de tentar entrar nessa música. Às vezes dou-me muito mal, às vezes é terrível… às vezes não dá certo… mas acho que esse é o verdadeiro espírito do jazz.
JNPDI!: E a opção de cantar em inglês…
LS: Porque vivo nos Estados Unidos. Eu fiz vários discos só em português. Fiz os dois discos Brazilian Duos e fiz um chamado Norte e Sul, que era metade em português e metade em inglês.
O Neruda é todo em inglês porque as traduções em inglês eram muito lindas e na verdade Neruda não precisa que eu cante ele em espanhol… Neruda é conhecidíssimo no mundo, não precisa nem que eu toque a poesia dele… já existe, já é maravilhoso. Porque gostava muito das traduções em inglês, senti necessidade que as pessoas conhecessem esse trabalho em inglês, que também é muito bonito e que é muito mais abrangente do que só o espanhol.
Cantar em inglês para mim hoje significa cantar na língua que eu falo 90% do tempo: lecciono em inglês e vivo nos Estados Unidos há 22 anos. É uma língua que é muito acessível para mim e que abre muitas portas.
A poesia deste novo disco, The New Bossa Nova, é toda em inglês e são poemas maravilhosos. Quando eu estava , entrando as letras do disco no computador obviamente não estava cantando e comecei a perceber realmente a profundidade e a beleza da poesia do Leonard Cohen e da Joni Mitchell. São grandes poetas e também são grandes compositores.
JNPDI!: Neste momento, além de cantar, lecciona na Manhattan School of Music. O que ensina?
LS: Ensino voz e o que eles chamam de musicianship for singers, ou seja, ensinar cantoras a serem mais músicos: ler bem, transcrever bem música, escrever bem um arranjo, comunicar as suas músicas através do papel. Em música é tudo muito abstracto e é preciso algo concreto. Claro que as cantoras têm aulas de arranjo e de leitura, mas eu dou uma aula em que combino todas essas modalidades e faço isso de uma forma prática.
JNPDI!: Como é o seu reconhecimento no Brasil? Os media falam?
LS: Sim, os media falam. A grande revista do Brasil é a Veja, da Abril Cultural, e saiu uma crítica do disco. Qualquer coisa de peso que eu faça sai na imprensa brasileira.
Tenho reconhecimento mas é um reconhecimento de uma elite. Faço um concerto no Brasil e a casa está cheia, mas não consigo tocar, como o Caetano toca, dois meses no Canecão, que é uma sala de 3000 pessoas.
É uma coisa elitista ainda e é natural porque quando mudei para os Estados Unidos claro que fiz a minha vida lá, e é lá que ganho a minha vida, e então não alimentei tanto o Brasil como devia ter alimentado ao longo dos anos e nunca tive o privilégio de gravar discos que fossem lançados no Brasil com consistência.
Um selo brasileiro, chamado Biscoito Fino, lançou dois discos meus (Brazilian Duos e Norte e Sul) e a Universal lançou o Duos II, mas os outros discos não foram lançados no Brasil até hoje e então não tenho catálogo no Brasil. É uma coisa de que me ressinto um pouco.
Deveria ao longo dos anos ter ido com mais consistência ao Brasil, mas estava ocupada a estudar, a dar aulas e com a família e isso complica as coisas. Gostaria muito, com este disco e com discos futuros e com uma gravadora maior, que é a Universal, de estar mais presente no mercado brasileiro.
JNPDI!: Mas não é um factor prestigiante uma brasileira ter sucesso nos EUA? Os brasileiros sentem esse orgulho em si?
LS: Sim, muito orgulho, mas ao mesmo tempo também sentem que abandonei o Brasil. Tem muita gente que diz "mas você não vinha nunca aqui"... O brasileiro é uma criatura estranha às vezes; ele gosta e ao mesmo tempo se ressente. Somos muito dramáticos, não por causa só do português, somos dramáticos por causa dos africanos também. A combinação do Brasil é uma coisa um pouco especial e acho que o Brasil também está muito ocupado. Como há uma abundância muito grande de música no Brasil eles têm de que falar o tempo inteiro, têm muitos artistas, muita música boa e muita música ruim, também.
JNPDI!: Por falar nisso, e uma vez que a Luciana é alguém muito bem posicionada para nos poder esclarecer, que músicos aconselharia a quem quiser ouvir música de qualidade da cena actual do Brasil?
LS: Eu acho que algumas pessoas sempre vão estar presentes na música brasileira, como Caetano [Veloso] e [Gilberto] Gil. São artistas que têm décadas de história, como o Miles Davis tinha. Tudo o que o Miles Davis fez, por menos que se goste, é de interesse e é de relevância porque ele estava travando um caminho que outras pessoas não travaram antes e então há um sentido de descoberta, de inovação que ele traz. Acho que tanto o Caetano como o Gil têm esse sentido e outras pessoas como Toninho Horta, que é um grande guitarrista, e, no caso dos Mineiros, Milton Nascimento. Tudo o que eles fazem merece uma luz e aí cabe a você dizer se é interessante ou não.
Da geração do meio, tem algumas pessoas de que gosto muito. O Guinga é uma pessoa que considero um dos grandes compositores do Brasil.
Da geração bem mais nova tem um rapaz em São Paulo chamado Chico Pinheiro, que grava para a Biscoito Fino. Ele é uma pessoa que, na minha opinião, é um grande músico, um grande visionário, e está escrevendo uma música que eu sinto que é brasileira e é contemporânea. Hoje em dia é impossível ser autêntico brasileiro; não existe mais o samba, não existe mais a bossa nova pura. Hoje em dia somos todos híbridos. O Chico é uma pessoa que nesse momento da vida dele sabe olhar para o Brasil e sabe olhar para fora e absorver essas influências.
Tem uma cantora em São Paulo chamada Mônica Salmaso que canta muito bem e é uma grande intérprete. Fez um trabalho com canções de Baden Powell, Afrosambas, que é um disco muito bonito.
Acho que tudo o que a gravadora Biscoito Fino lança é bom, eles estão relançando todo o catálogo de Chico Buarque, que é um grande poeta brasileiro, e acho que o trabalho deles é um trabalho de reconhecimento do catálogo do Brasil, do que aconteceu no passado e do que está acontecendo agora.
JNPDI!: Que grandes poetas brasileiros admira?
LS: Da poesia musical brasileira sou muito fã dos poetas mais antigos, dos sambistas mais antigos, como Nelson Cavaquinho e como Cartola, que eram pessoas, na verdade, quase iliteratas, no sentido que não tinham tido estudos, escola, o refinamento que outras pessoas tiveram, como Jobim teve ou Vinicius teve, e escrevem de uma forma tão pura, mas tão poética... e retratam tanto o amor como o retrato do Brasil daquele momento que eles viveram, que é uma coisa muito particular. Desses sambistas antigos gosto muito especialmente do Nelson Cavaquinho, que era um profeta.
Das pessoas que ainda estão vivas e fazendo poesia, gosto muito do Paulinho da Viola, de Chico Buarque e de Vinicius Morais, de que eu canto absolutamente tudo. Qualquer coisa que você cantar do Vinicius não só é boa poesia, como soa bem cantado. Ele teve essa magia de poder escrever bem para o cantor também.
De poetas, gosto de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade.
Luciana Souza: Pois é, que efeito maravilhoso esse! Você não atinge todas as pessoas e nem é essa a intenção. A intenção é de buscar as pessoas que realmente estão procurando esse tipo de experiência e que desejam, nesse barulho todo, buscar um espaço de introspecção. É isso que eu acho que é uma das grandes coisas que a bossa nova ofereceu.
Na minha opinião o que acontece antes da bossa nova é o samba, que é uma experiência comunitária no Brasil, uma experiência de exuberância, de dança, de estar nas ruas, de beber cerveja… É uma coisa muito forte que nós temos.
No entanto, o que se segue depois do samba e depois de cantar alto é uma pessoa como o João Gilberto pegar no microfone, trazer perto e basicamente sussurrar. A profundidade, a subtileza da maneira como ele canta e como ele se expressa – o ritmo muda um pouquinho – é uma coisa muito refinada. Não é que eu esteja almejando ser uma coisa refinada; é que eu gostaria que as pessoas escutassem com cuidado. Acho que existem pessoas no mundo hoje em dia que buscam exactamente essa experiência, que estão cansadas desse bombardeamento e dessa informação.
JNPDI!: O que é exactamente este disco The New Bossa Nova? É pegar nos temas do Sting, do Leonard Cohen e de outros grandes compositores contemporâneos do rock e da pop e reinterpretá-los ao som da bossa nova?
LS: É uma roupagem. A primeira reacção que eu tive quando tentei fazer isso foi uma reacção de roupagem, de tentar vestir os temas com a estética da bossa nova. Acho que a grande coisa que a bossa nova oferece, independentemente do ritmo e da instrumentação, é essa questão meditativa e para mim, que leio muita poesia e que trabalho muito com poesia, o que eu gostaria de oferecer às pessoas é essa leitura poética dessas canções.
Quando o James Taylor gravou a sua própria canção tinha um coro de várias pessoas cantando junto, tinha instrumentos electrónicos… Nós fazemos uma versão completamente despojada, quer dizer, você tira todos os excessos que tem e apresenta a poesia, a melodia e essa harmonia simples.
Essa música sobrevive a mim tocando sozinha no violão, como o João Gilberto faz com as canções do Jobim. Se sobrevive a mim é porque tem essa linha de contraponto de voz, harmonia e poesia e é basicamente isso que eu quero apresentar às pessoas. Em muitos dos meus discos anteriores, especialmente nos Duos Brasileiros, é essa a intenção: fazer um recital de música brasileira só com voz e violão. Este disco é um pouco mais estilizado, mais produzido, mas a intenção é a mesma: que a pessoa escute a poesia, escute a melodia e escute essa canção.
JNPDI!: É possível pegar em virtualmente qualquer tema, de qualquer compositor, e transformá-lo em bossa nova?
LS: Sabe que não?! [risos] É uma coragem que eu tenho de tentar submeter essas canções a isso e cabe a vocês críticos e ao público dizer se sim ou se não. Eu acredito que sim e por isso coloquei o meu nome do disco. Acredito nessas canções. Agora… começámos com 80/90 canções e eu tocava todas e ia seleccionando, muito por causa da questão do poema, de me identificar com o poema e de poder cantá-lo ou não.
O que eu queria também era que todos os temas do disco tivessem uma coerência e todos os temas do disco lidam com versões ou manifestações do amor na vida de uma pessoa, todas essas encarnações do amor.
JNPDI!: O que é a bossa nova para si?
LS: Eu carrego dentro de mim, do meu DNA, essa história da bossa nova porque sou filha de dois bossa novistas que não foram famosos, mas o meu pai nasceu na mesma cidade de João Gilberto, em Juazeiro da Baía, cresceu com João Gilberto e foi para o Rio de Janeiro em 1958, onde estava João Gilberto, ficou amigo dele e de Jobim e gravou na primeira gravação de «Chega de Saudade», em 1958.
Eu cresci ouvindo essa música. Até hoje se o meu pai pega um violão para tocar ele não toca samba, toca bossa nova. Então o soundtrack da minha vida, quando eu penso em tudo o que eu já passei, é esse ritmo. Para mim, é um estilo, é um ritmo, é uma forma de cantar, que é muito simples e, no caso do João [Gilberto], muito afinada, muito colocada e com variações rítmicas muito profundas e delicadas. Não é como improvisar como eu improviso como quando canto jazz; é uma coisa de pegar uma frase e movê-la um pouquinho, uma coisa milimétrica que dá um outro sentido à coisa.
É um estilo e é uma forma de introspecção, meditativa.
JNPDI!: Como foi crescer nesse ambiente musical?
LS: Maravilhoso… Maravilhoso e, de uma certa forma, até perigoso no sentido de que o meu pai e a minha mãe têm tão bom gosto musical e são tão críticos que exerceram sobre mim e sobre os meus irmãos um filtro. Eu cresci ouvindo James Taylor e Joni Mitchell, mas quando já era adolescente porque em menor, apesar das minhas irmãs escutarem, eu não podia escutar; só podia escutar música boa, música de qualidade. Hoje em dia meu pai acha essa música uma música de qualidade porque ele aprendeu através de nós a apreciar essas coisas.
Esse ambiente para mim foi riquíssimo. Crescemos sem televisão, com muitos filhos e tínhamos em casa dois pianos e músicos maravilhosos passando. O Milton Nascimento passava para comer, sempre músicos muito pobres, e Hermeto Pascoal é meu padrinho de nascimento. Tive uma infância muito rica musicalmente e exposta a coisas para as quais não existe escola.
JNPDI!: Como é que na vivência íntima da música brasileira lhe surgiu o interesse pelo jazz?
LS: Inevitável… inevitável porque o meu pai sempre trazia para casa discos de jazz, desde big bands, como as de Stan Kenton e Bill Holman, a muito Sinatra, muita Ella [Fitzgerald], muita Billie [Holiday]. Ele realmente gostava, não entendia nada das canções (o meu pai não fala uma palavra em inglês), mas entendia o espírito.
Depois, cresci a ver os filmes da Broadway, esses grandes musicais onde você ouvia as canções, os temas e os arranjos, e com a presença de Hermeto [Pascoal] em casa e de outros grandes músicos, como César Mariano (que foi marido de Elis Regina), que passavam pela casa e sentavam no piano e tocavam. E também indo a concertos. O meu pai levava a gente a muitos concertos, quando estávamos em São Paulo. Todos os Domingos.
Portanto o Jazz foi para mim inevitável, mas como cantora foi uma escolha. Quando entrei na Berklee para fazer o meu bacharelato fiz uma opção: podia entrar como cantora ou estudar outra coisa. Preferi estudar composição porque achei que cantar podia cantar sempre, mas composição – estudar e aprender a analisar a teoria e a harmonia – só poderia fazê-lo na escola. Essa opção foi muito boa para mim porque me educou como músico e por isso hoje em dia considero-me uma vocalista. Vocalizo o que sinto como músico.
JNPDI!: Como foi esse percurso do Brasil até aos EUA, concretamente até à Berklee?
LS: Tenho um irmão que estava na Berklee a estudar score para cinema e escreveu-me uma carta a dizer que “esse lugar é o lugar para você, você é uma pessoa séria”. Consegui uma bolsa de estudo total e fui. Voltei para o Brasil depois de quatro anos e aí fui fazer o mestrado no New England Conservatory of Music.
JNPDI!: Sendo natural do Brasil, mas vivendo nos EUA não sente muito o contraste entre estes dois mundos, um de pobreza e outro de abundância?
LS: Sim, mas isso é difícil para qualquer ser humano do mundo. Não consigo separar-me de África, por exemplo. Eu sou uma cidadã do mundo hoje em dia: vivo em Los Angeles, mas já vivi em Nova Iorque, em Boston e no Brasil e viveria na Europa se fosse possível, que adoro.
Tenho, claro, como brasileira, um sentimento profundo de pena das pessoas no Brasil, de revolta, porque socialmente é uma injustiça, é uma coisa chocante para todos nós. Mas sinto que isso é um problema que nós temos no mundo hoje em dia, não é um problema só do Brasil.
É difícil viver num país tão abundante, mas foi uma escolha que eu fiz porque o que eu gostaria de fazer musicalmente não seria possível no Brasil: viver uma carreira de académica, porque eu sou professora de música, e viver uma carreira onde eu posso fazer exactamente o que eu quero fazer musicalmente.
No Brasil isso não é possível a não ser que você seja Caetano Veloso ou Gilberto Gil. No Brasil você tem que estar num nível em que realmente você pode exercer influência ou conseguir oportunidade de fazer como artista exactamente o que você quer.
Nos Estados Unidos você consegue viver muito simplesmente, mas com muita dignidade, fazendo exactamente o que você quer e essa foi uma escolha que percebi, graças a Deus, muito cedo na minha vida. Então resolvi optar e deixar a minha família e o meu país, mas viver num país onde vou conseguir exprimir-me musicalmente e onde posso fazer projectos desde música contemporânea até música de câmara, jazz, música pop, o que quiser.
As pessoas comentam muito comigo que para mim não existe estilo… Claro que existe estilo. Estou muito consciente de que existem estilos distintos, mas a minha paixão pela música, a minha curiosidade e a minha coragem fazem-me negar isso. Reconheço os estilos e estou consciente deles, mas saber que é um estilo diferente não vai me impedir de tentar entrar nessa música. Às vezes dou-me muito mal, às vezes é terrível… às vezes não dá certo… mas acho que esse é o verdadeiro espírito do jazz.
JNPDI!: E a opção de cantar em inglês…
LS: Porque vivo nos Estados Unidos. Eu fiz vários discos só em português. Fiz os dois discos Brazilian Duos e fiz um chamado Norte e Sul, que era metade em português e metade em inglês.
O Neruda é todo em inglês porque as traduções em inglês eram muito lindas e na verdade Neruda não precisa que eu cante ele em espanhol… Neruda é conhecidíssimo no mundo, não precisa nem que eu toque a poesia dele… já existe, já é maravilhoso. Porque gostava muito das traduções em inglês, senti necessidade que as pessoas conhecessem esse trabalho em inglês, que também é muito bonito e que é muito mais abrangente do que só o espanhol.
Cantar em inglês para mim hoje significa cantar na língua que eu falo 90% do tempo: lecciono em inglês e vivo nos Estados Unidos há 22 anos. É uma língua que é muito acessível para mim e que abre muitas portas.
A poesia deste novo disco, The New Bossa Nova, é toda em inglês e são poemas maravilhosos. Quando eu estava , entrando as letras do disco no computador obviamente não estava cantando e comecei a perceber realmente a profundidade e a beleza da poesia do Leonard Cohen e da Joni Mitchell. São grandes poetas e também são grandes compositores.
JNPDI!: Neste momento, além de cantar, lecciona na Manhattan School of Music. O que ensina?
LS: Ensino voz e o que eles chamam de musicianship for singers, ou seja, ensinar cantoras a serem mais músicos: ler bem, transcrever bem música, escrever bem um arranjo, comunicar as suas músicas através do papel. Em música é tudo muito abstracto e é preciso algo concreto. Claro que as cantoras têm aulas de arranjo e de leitura, mas eu dou uma aula em que combino todas essas modalidades e faço isso de uma forma prática.
JNPDI!: Como é o seu reconhecimento no Brasil? Os media falam?
LS: Sim, os media falam. A grande revista do Brasil é a Veja, da Abril Cultural, e saiu uma crítica do disco. Qualquer coisa de peso que eu faça sai na imprensa brasileira.
Tenho reconhecimento mas é um reconhecimento de uma elite. Faço um concerto no Brasil e a casa está cheia, mas não consigo tocar, como o Caetano toca, dois meses no Canecão, que é uma sala de 3000 pessoas.
É uma coisa elitista ainda e é natural porque quando mudei para os Estados Unidos claro que fiz a minha vida lá, e é lá que ganho a minha vida, e então não alimentei tanto o Brasil como devia ter alimentado ao longo dos anos e nunca tive o privilégio de gravar discos que fossem lançados no Brasil com consistência.
Um selo brasileiro, chamado Biscoito Fino, lançou dois discos meus (Brazilian Duos e Norte e Sul) e a Universal lançou o Duos II, mas os outros discos não foram lançados no Brasil até hoje e então não tenho catálogo no Brasil. É uma coisa de que me ressinto um pouco.
Deveria ao longo dos anos ter ido com mais consistência ao Brasil, mas estava ocupada a estudar, a dar aulas e com a família e isso complica as coisas. Gostaria muito, com este disco e com discos futuros e com uma gravadora maior, que é a Universal, de estar mais presente no mercado brasileiro.
JNPDI!: Mas não é um factor prestigiante uma brasileira ter sucesso nos EUA? Os brasileiros sentem esse orgulho em si?
LS: Sim, muito orgulho, mas ao mesmo tempo também sentem que abandonei o Brasil. Tem muita gente que diz "mas você não vinha nunca aqui"... O brasileiro é uma criatura estranha às vezes; ele gosta e ao mesmo tempo se ressente. Somos muito dramáticos, não por causa só do português, somos dramáticos por causa dos africanos também. A combinação do Brasil é uma coisa um pouco especial e acho que o Brasil também está muito ocupado. Como há uma abundância muito grande de música no Brasil eles têm de que falar o tempo inteiro, têm muitos artistas, muita música boa e muita música ruim, também.
JNPDI!: Por falar nisso, e uma vez que a Luciana é alguém muito bem posicionada para nos poder esclarecer, que músicos aconselharia a quem quiser ouvir música de qualidade da cena actual do Brasil?
LS: Eu acho que algumas pessoas sempre vão estar presentes na música brasileira, como Caetano [Veloso] e [Gilberto] Gil. São artistas que têm décadas de história, como o Miles Davis tinha. Tudo o que o Miles Davis fez, por menos que se goste, é de interesse e é de relevância porque ele estava travando um caminho que outras pessoas não travaram antes e então há um sentido de descoberta, de inovação que ele traz. Acho que tanto o Caetano como o Gil têm esse sentido e outras pessoas como Toninho Horta, que é um grande guitarrista, e, no caso dos Mineiros, Milton Nascimento. Tudo o que eles fazem merece uma luz e aí cabe a você dizer se é interessante ou não.
Da geração do meio, tem algumas pessoas de que gosto muito. O Guinga é uma pessoa que considero um dos grandes compositores do Brasil.
Da geração bem mais nova tem um rapaz em São Paulo chamado Chico Pinheiro, que grava para a Biscoito Fino. Ele é uma pessoa que, na minha opinião, é um grande músico, um grande visionário, e está escrevendo uma música que eu sinto que é brasileira e é contemporânea. Hoje em dia é impossível ser autêntico brasileiro; não existe mais o samba, não existe mais a bossa nova pura. Hoje em dia somos todos híbridos. O Chico é uma pessoa que nesse momento da vida dele sabe olhar para o Brasil e sabe olhar para fora e absorver essas influências.
Tem uma cantora em São Paulo chamada Mônica Salmaso que canta muito bem e é uma grande intérprete. Fez um trabalho com canções de Baden Powell, Afrosambas, que é um disco muito bonito.
Acho que tudo o que a gravadora Biscoito Fino lança é bom, eles estão relançando todo o catálogo de Chico Buarque, que é um grande poeta brasileiro, e acho que o trabalho deles é um trabalho de reconhecimento do catálogo do Brasil, do que aconteceu no passado e do que está acontecendo agora.
JNPDI!: Que grandes poetas brasileiros admira?
LS: Da poesia musical brasileira sou muito fã dos poetas mais antigos, dos sambistas mais antigos, como Nelson Cavaquinho e como Cartola, que eram pessoas, na verdade, quase iliteratas, no sentido que não tinham tido estudos, escola, o refinamento que outras pessoas tiveram, como Jobim teve ou Vinicius teve, e escrevem de uma forma tão pura, mas tão poética... e retratam tanto o amor como o retrato do Brasil daquele momento que eles viveram, que é uma coisa muito particular. Desses sambistas antigos gosto muito especialmente do Nelson Cavaquinho, que era um profeta.
Das pessoas que ainda estão vivas e fazendo poesia, gosto muito do Paulinho da Viola, de Chico Buarque e de Vinicius Morais, de que eu canto absolutamente tudo. Qualquer coisa que você cantar do Vinicius não só é boa poesia, como soa bem cantado. Ele teve essa magia de poder escrever bem para o cantor também.
De poetas, gosto de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade.
3 Comments:
Parabéns pelos 4 anos do Jazz no País do Improviso!
Venham mais 4 (x10), pelo menos.
Ainda hoje me divirto imenso com o post "Se Portugal fosse uma big band".
Parabén pelos 4 anos e pelo blog.
Ora viva!
Muito agradecido pelo comentário.
Rir é importante e o Jazz também se presta ao humor.
Abraço
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