25 de abril de 2009

25 de Abril, Charlie Haden e o Jazz antes da Liberdade

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Foto: Arquivo do Diário de Lisboa

No dia em que se celebram 35 anos do 25 de Abril de 1974, JNPDI recorda um célebre episódio ocorrido no anterior regime num tempo em que a liberdade ainda estava prisioneira das comissões de censura e da PIDE/DGS, a polícia política do Estado Novo.

Referimo-nos ao "caso" Charlie Haden, relativamente ao qual publicamos hoje, porque a liberdade tal nos permite, documentos até agora desconhecidos do grande público e que constavam do arquivo da PIDE/DGS.

Recuemos, pois, à noite de 20 de Novembro de 1971 e ao interior do Pavilhão do Dramático, em Cascais.


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Foto: IANTT

Resignado a tocar depois de Miles Davis, Ornette Coleman não aceitou porém actuar no final da primeira noite do festival, como era intenção da organização, que entretanto já preparara o palco para os músicos portugueses, e exigiu ser o segundo, sob ameaça de abandonar o recinto passados cinco minutos... Resultado, uma hora de espera para o público, com várias pessoas a abandonarem a sala.

Finalmente o “pai” do Free-Jazz subiu ao palco, acompanhado por Dewey Redman (saxofone tenor), Charlie Haden (contrabaixo) e Ed Blackwell (bateria), e os seus sons “ruidosos” e o adiantado da hora provocaram nova debandada entre o público. Tito Lívio caracterizaria no jornal República a música de Coleman, considerando-a um “Jazz sem regras, severo, anti-superficial, o destruir das linhas harmónicas, a arritmia”.

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Foto: Augusto Mayer

Francisco Pinto Balsemão era um dos notáveis espectadores deste concerto e logo após o mesmo exprimia à RTP a sua opinião: “Gosto muito mais do Ornette Coleman do que do Miles Davis, sem comparação. Não é uma música de bater o pé, mas é uma música muito mais livre e portanto permite, a quem é artista, como ele, dizer muito mais, e a mim disse muito”.

Esta declaração – para ler nas entrelinhas, como quase tudo o que a imprensa publicava antes do 25 de Abril – tinha a ver com o acontecimento extra-musical que ficou para sempre ligado à história do Cascais Jazz, quando a dado momento Charlie Haden se curvou para o microfone usado para amplificar o seu contrabaixo e dedicou o tema «Song for Che» aos movimentos de libertação dos negros em Angola e Moçambique. “Quando o Charlie Haden leu a mensagem as pessoas nas bancadas levantaram-se como uma mola e ergueram os punhos em saudação comunista”, recorda João Braga.

No exterior do Pavilhão do Dramático estavam já posicionadas duas camionetas com polícia de choque e pouco tempo depois o Comandante da PSP de Cascais ameaçava João Braga, ordenando o fim do espectáculo. “Ele disse-me «Acabem já com isto ou faço entrar esta malta!”», ao que eu respondi: Faça favor, o palco é todo seu, mas cuidadinho que as cadeiras não estão fixas ao chão…” O espectáculo prosseguiu.

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Foto: Duarte Mendonça

A imprensa “oficial” ignorou por completo o incidente (a censura não perdoava…), à excepção do Diário de Lisboa onde, nas entrelinhas de um artigo de José Jorge Letria (que entrevistara Haden nas vésperas da sua actuação e o questionara sobre a possibilidade de o Jazz poder ser uma forma de actuação política…), se podia perceber que algo mais do que Jazz se passara no Dramático: “Quem é que não sentiu um nó na garganta com a violência (negra) do quarteto de Ornette Coleman? Quem é que não estremeceu ao ver o punho cerrado de Dewey Redman (…) bem erguido no ar, no final da sua actuação? E éramos todos os acusados”…

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Fonte: IANTT

Este evento não deixou porém de ser noticiado nos órgãos clandestinos, como a Rádio Portugal Livre (emitida em onda média a partir da Argélia) e o jornal Portugal Democrático, que informava que “No Festival de Jazz de Cascais um dos músicos americanos dedicou um número aos Movimentos de Libertação de Angola e Moçambique. Apesar de falar em inglês, as suas palavras foram traduzidas pelas pessoas que entenderam e a sala quase veio abaixo com os aplausos. No final do espectáculo, ao regressar ao seu camarim, era ali aguardado por agentes da PIDE que o intimaram a deixar imediatamente o País. Foi forçado a seguir de Cascais para o aeroporto e embarcar no mesmo dia”.

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Fonte: IANTT

Na verdade Charlie Haden seguiu para o Aerorporto de Lisboa, onde foi detido na manhã do dia seguinte e levado para a sede da PIDE/DGS (Direcção-Geral de Segurança), na Rua António Maria Cardoso.

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Foto: JMS/JNPDI

No auto de declarações o músico é referido como membro do quarteto de Hornet Coleman [sic] e a argumentação do interrogatório não podia ser mais cínica, tendo o músico sido “Convidado a declarar se foi bem recebido em Portugal e aqui achou ambiente favorável à sua visita”, ao que Haden respondeu afirmativamente, e se “uma vez que foi bem recebido no nosso País, qual o motivo porque já durante a viagem no avião abordou assuntos referentes aos movimentos africanos desfavoráveis a Portugal e durante a sua actuação em Cascais dedicou uma canção escrita por ele próprio intitulada “canção para o CHE”, aos movimentos africanos de independência (…)”. De acordo com o auto de declarações, Haden mostrou-se “arrependido pelo acto que praticou por desconhecer que afectava o país onde o fazia”.

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Fonte: IANTT
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Fonte: IANTT
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Fonte: IANTT

Mas enquanto estava na sede da DGS Haden tinha algo na algibeira… como Paulo Gil recorda agora: ”Disse-me o Charlie Haden que a gravação do tema «Song For Che», realizada em Cascais naquela noite, se encontrava na algibeira da sua gabardina que vestiu quando foi detido pela PIDE. Como, na rua António Maria Cardoso, a gabardina foi pendurada num cabide existente no gabinete em que foi interrogado, e só depois disso é que o revistaram, a PIDE nunca confiscou a gravação...” E foi assim que em 1976 Charlie Haden pôde incluir parte desta gravação no disco Closeness (no tema «For a Free Portugal»), que Paulo Gil e Rui Neves importaram para Portugal quando o primeiro era director geral do Departamento de Discos da Valentim de Carvalho.

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Entretanto, chegavam também à sede da DGS Luís Villas-Boas e João Braga, que a PIDE fora buscar de madrugada, tentando este último servir de moderador entre os agentes e Haden: “O Inspector Glória dizia-me «O gajo tem de levar uns tabefes» e eu disse que eles é que sabiam, mas que sabia como eram os tabefes da PIDE e que quando ele chegasse a Londres teria as marcas para mostrar à imprensa... Ele perguntou-me se eu achava então que ele devia ser condecorado e eu disse que não, que achava que eles deviam ir entregá-lo a casa do Adido Cultural dos EUA em Portugal sob pretexto de ele não ser digno dos calabouços da PIDE…”

No dia 21, Domingo, Haden foi assim levado sob escolta a casa do Adido Cultural da Embaixada do EUA e no dia seguinte foi colocado no Aeroporto de Lisboa, de onde partiu para Londres no voo das 9h00 da TAP.

Quanto a Villas-Boas e João Braga viam-se agora confrontados com a decisão da DGS em cancelar o segundo dia do Festival (21 Novembro), intimando-os a devolver o dinheiro dos bilhetes já vendidos, solução logo rejeitada por ambos. Ao fim de várias horas de argumentação os agentes da DGS exigiram finalmente 500 livre-trânsito para autorizar a prossecução do Festival e às 13h00 desse dia Villas-Boas e Braga abandonavam as instalações para ir assistir ao jogo de futebol Portugal-Bélgica, acompanhando Dizzy Gillespie, que exigira ver Eusébio jogar.

Charlie Haden regressou a Portugal já depois do 25 de Abril, tendo actuado na Festa do Avante, e se o episódio de 1971 não estragou a sua amizade com Villas-Boas, a verdade é que também não lhe deu muita saúde, embora o "pai" do jazz em Portugal desconfiasse (e soubesse) que o contrabaixista tinha sido instrumentalizado... algo que nunca revelou publicamente, mas que é conhecido num círculo restrito e comprovado pela análise de documentos da época.

Villas-Boas, homem de esquerda, próximo do PS, celebrou o 25 de Abril na rua, no dia seguinte, tal como documenta a foto que João Freire lhe tirou nessa data no Largo Camões, em Lisboa.

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Já em tempo de Liberdade e Democracia, Villas-Boas iria nos anos seguintes tentar reabrir o Luisiana, em Cascais, fechado pela PSP numa atitude autocrática e conluiada com homens influentes no regime que não queriam um clube de jazz à sua porta. Teve mais sorte, porém, em celebrar em 1979 o 5.º aniversário do 25 de Abril com um concerto dos Jazz Messengers no Terreiro do Paço.


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