27 de julho de 2007

Josephine Baker em Portugal

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Josephine Baker no cais de Alcântara, em Março de 1939.

Sai hoje na revista Blitz um artigo que escrevemos sobre as várias passagens de Josephine Baker por Portugal, do qual deixamos aqui um excerto relativo apenas a duas das 7 visitas; as de 1939 e 1960.

Entre 1939 e 1960, Josephine Baker, que nos anos 20 foi o ícone do jazz e da libertação sexual, escandalizando a velha Europa com as suas ousadas e desnudadas danças, passou sete vezes por Portugal. Desde simples escalas a concertos, acções de espionagem para os serviços secretos franceses, uma tentativa frustrada de adopção e até declarações políticas pró-fraternidade universal, não passou despercebida nem sem levantar protestos pela sua arte e cor.

A caminhada de Josephine Baker para o sucesso começou a bordo de um navio que em Setembro de 1925 a levou de uns Estados Unidos então segregacionistas para uma Paris mais tolerante e receptiva à sua arte – a arte de uma negra que desafiava a hegemonia cultural dos brancos e os tabus sociais vigentes.

Foi igualmente a bordo de um navio que a estrela das revistas negras chegou pela primeira vez a Portugal: 17 de Março de 1939, o paquete Massilia, em que Josephine viajava de Bordéus rumo a Buenos Aires e ao Rio de Janeiro, para uma série de espectáculos, fez escala em Lisboa, pelo que durante algumas breves horas a já célebre artista teve oportunidade de se passear pelas ruas da capital, ostentando um chapéu e véu negros, uma blusa «quase encarnada» e um longo casaco de peles.

Josephine não tornara, porém, pública a sua presença entre nós, pelo que só um golpe de sorte fez com que os jornalistas a descobrissem, como narrava o repórter do jornal República: «Pode realmente admitir-se que o acaso, se é o grande protector das polícias, às vezes também é dos repórteres... Já nós tínhamos desistido de nos interessar mais pelos passageiros do "Massilia" que esta manhã passou no Tejo, quando soubemos que de seu bordo havia desembarcado um passageiro de marca... Tinha-se passado à nossa rede e andava passeando "clandestinamente" por Lisboa. Nada menos que Josefina Backer (...)». Para este repórter, Josephine Baker era «a famosa Joséphine, a que veio do Senegal [sic] para revolucionar Paris com a sua extraordinária interpretação do "couplet", uma negra de alma branca, "rainha" do "jazz-band" (...)».

Já o Diário de Lisboa referia-se à artista como a «"estrela" mais excêntrica e porventura mais famosa do nosso tempo – a das danças infernais e selváticas que é como que a personificação do "jazz-band" musical e coreográfico» e, ainda, como o «demónio dançante».

Acompanhada por uma secretária particular e por uma ocasional companheira de viagem, passou pelo Terreiro do Paço, Rua Augusta, visitou o Parque Eduardo VII, comprou flores na Rua Garrett, e surpreendeu os colaboradores do Diário de Notícias: «Ao princípio da tarde, quando Lisboa resplandecia sob um sol dourado e acariciante, entraram pela nossa Redacção três raparigas bem vestidas e cheias de alegria». Josephine não pretendia ser notícia, mas algo bem mais comezinho: saber onde encontrar «um restaurante típico».

A convite de dois repórteres deste jornal almoçou no restaurante Jerónimo, no Bairro Alto, onde ainda hoje se mantém afixada a fotografia desta ilustre visitante. A finalizar o repasto, e «para corresponder à gentileza dos dois jornalistas que a haviam convidado, Josefina cantou, não com a estridência do "jazz", mas à meia-voz tanguista – para não dar escândalo na pacífica travessa do Bairro Alto».

De Portugal, Josephine Baker despedia-se com a canção «Avec», no fim da qual se retirou com ligeiros passos de dança – bem distantes dos seus frenéticos movimentos dos anos 20.

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Findo o almoço, jornalistas e artista seguiram para o cais de Alcântara, onde um repórter do Diário de Lisboa, ignorando a terra de origem da vedeta, lhe colocou directamente a questão. Josephine não hesitou: «Da América do Norte... negra». Em resposta, na edição do dia seguinte podia ler-se neste diário: «Aquela mulher vibrante e colorida como uma pimentinha do Novo Mundo, embrulhada num casaco "petit gris" riquíssimo (..), marcava assim, numa palavra, o seu despeito perante a atitude dos seus compatriotas… brancos». Poucos minutos depois deste breve encontro Josephine embarcava, momento que o Diário de Lisboa descreveria: «E, mostrando os grandes e lindos dentes, que eram uma ilha de brancura no mar vermelho dos seus lábios, Josefina despediu-se de nós e entrou no barco que dali a pouco largava – caminho de Buenos Aires...».

Entretanto os jornalistas do DN, mais afortunados, subiam a bordo do Massilia e reportavam: «O camarote onde Josephine Baker viaja está literalmente cheio de flores». Aí Josephine mostrou-lhes os seus dotes no tricot, fazendo-se inclusivamente fotografar a tricotar, e fez questão de lhes deixar uma recordação: «Vai abrir uma mala que está no porão, e, de entre as sedas, "lamés" e lantejoulas, tira uma porção de fotografias e um livro, "Mon sang dans tes veines", escrito sob sua inspiração». A sua simplicidade impressiona: «Quer ainda traçar uma dedicatória e os minutos que faltam para a partida contam-se já pelos dedos duma das mãos. O sítio não é propício. Não há nenhuma mesa à vista, nem um simples caixote. Mas Josephine, a vedeta que ganha milhões, não se prende com pequenas coisas. E é mesmo sobre um degrau da escada, numa posição de adorável simplicidade que nenhum fotógrafo teve a fortuna de surpreender, que escreve algumas palavras amáveis nos retratos que acaba de nos oferecer».

O Massilia que levava Josephine para o Novo Mundo desempenharia alguns meses depois um papel importante na história de França, ao transportar, em Junho de 1940, para Casablanca, 21 deputados e um senador franceses que se opunham ao armistício com a Alemanha e por isso abandonavam o país para se juntarem ao novo governo que se instalava em Argel.

1960: Especial RTP com mensagem política

Em Novembro de 1960 Josephine Baker deslocou-se a Portugal a convite da RTP para participar num programa televisivo, dando continuidade a um avultado investimento que o canal público vinha realizando na contratação de vedetas internacionais para actuar nos seus estúdios. Com efeito, neste ano passaram pelos estúdios do Lumiar mais de 1000 artistas nacionais e estrangeiros, num total de 350 espectáculos de variedades. Como recorda à BLITZ Vasco Hogan Teves, historiador da radiotelevisão portuguesa: «Esta era uma época em que vinham à RTP muitos artistas franceses através de uma boa relação de Melo Pereira [produtor da RTP] com Bruno Coquatrix, proprietário do Olympia».

O programa foi dirigido por Nuno Fradique, um dos primeiros realizadores da estação, contando com cenários de António Botelho, que se inspirou em motivos parisienses, dispondo no plateau telas, candeeiros de rua e outros elementos decorativos que remetiam para a cidade-luz. Foi neste contexto que no dia 29 deste mesmo mês, às 22h30, Josephine, ornamentada de plumas e lantejoulas, entrou em casa dos portugueses para, acompanhada por uma orquestra dirigida pelo maestro Tavares Belo, interpretar nove canções, entre as quais «Paris Mes Amours» (com a qual abriu o espectáculo), «En Avril A Paris» (numa excelente interpretação) e a célebre «La Petite Tonkinoise». Este não ia ser, porém, um inocente programa de variedades já que a cantora deixaria bem vincada a sua faceta de defensora de causas – ao incluir no repertório uma canção composta em 1943 por Ary Barroso, «Terre Sèche», que serviu de mote a uma clara intervenção política. Nesta prece contra a escravatura e discriminação do povo negro – cantada poucos meses depois da UPA e do MPLA terem proposto ao governo português a negociação de uma solução pacífica para as colónias e de o PAIGC ter reclamado a autodeterminação da Guiné e de Cabo Verde –, Josephine alcançou uma emoção surpreendente. Ou não estivesse a viver intensamente o seu envolvimento nos movimentos anti-racistas, que datava já de 1949, quando se filiou na Liga Internacional Contra o Racismo e o Anti-semitismo, ligação que viria a ter como ponto alto a sua participação na célebre marcha de Washington, em 1963, ao lado de Martin Luther King.

Não deixa contudo de causar espanto que, num país colonialista de e liderado por um governo defendido pela supressão da liberdade de expressão, os serviços de censura tenham autorizado a transmissão deste tema e, sobretudo, as palavras de Josephine: «Perguntamo-nos por vezes, com razão, por que nascemos, por que nascemos com outra cor, de cor. (…) No entanto foi o bom Deus que nos fez desta cor». A cantora não se ficou por aqui – na canção que se seguiu, «Mon P’tit Bonhomme», dedicada às crianças, fez nova intervenção política, dificilmente do agrado do Governo de Oliveira Salazar – os valores que defendia não eram coincidentes com os do Estado Novo: «Amamos todas as crianças, todas as crianças do mundo inteiro, não importa de que país venham porque são as crianças que se tornarão mais tarde homens; homens grandes, espero, que se amarão entre eles na fraternidade universal. É nisso que acredito, na fraternidade universal. Não têm importância a cor, os continentes de onde vêm, nada: são homens».

Se é certo que Josephine não mais regressaria a Portugal – embora seja pura especulação relacionar este episódio com tal facto – a ausência de censura das referidas intervenções poderá ter decorrido de várias circunstâncias: a elevada probabilidade de o programa ter sido emitido em directo com gravação em simultâneo – como defende Vasco Hogan Teves ao afirmar que «as gravações [para emissão posterior] só começaram em 1964» –; o facto de Josephine Baker se ter expressado em francês; o facto de o programa não ter sido legendado... A verdade é que as palavras da cantora ficaram confinadas aos escassos ecrãs existentes em Portugal neste período – se chegaram às redacções dos jornais, aí ficaram para sempre retidas pelo castrador lápis azul da censura.

BLITZ 14

Texto completo e mais informação na BLITZ de Agosto, já nas bancas.


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