26 de dezembro de 2005

Um início promissor!

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Filipe Melo, pianista da mais jovem geração de talentos que a escola de Jazz do Hot Club de Portugal produziu, lançou recentemente o seu primeiro disco: Debut.

Em nosso entender há várias razões que justificam a audição deste disco e nenhuma delas, ou pelo menos nenhuma das mais importantes, é a amizade e apreço que temos por Melo.

1.ª - O conjunto em si

Filipe Melo lidera hoje aquela que podemos considerar uma das melhores secções rítmicas do jazz nacional, com Bruno Santos (guitarra) e Bernardo Moreira (contrabaixo). A coesão, competência e profissionalismo deste combo é bem evidente em Debut.

A solidez deste projecto prova de resto, e bem, o quanto compensa estudar e viver para música, mais até do que viver da música. É o caso de cada um dos membros deste trio, aliás requisitado para acompanhar outros intérpretes, como por exemplo a cantora Marta Hugon.

2.ª - O swing

Não é fácil encontrar entre nós outro combo que tenha raízes tão profundas no jazz (mesmo que seja no mainstream) e produza tamanho swing. Melo, Santos e Moreira são uma autêntica fábrica deste produto em vias de extinção a que chamamos swing.

Ouça-se, por exemplo, "Jingles" ou "I Got Rhythm", esta última porventura a melhor versão que já ouvimos por um combo nacional. A Guitarra de Bruno Santos é uma verdadeira locomotiva que, com a energia do contrabaixo de Bernardo Moreira, impulsiona uma interpretação assaz interessante e ritmada. Ouça-se a progressão narrativa do piano de Filipe Melo. Está lá tudo o que é preciso por ora.

É certo que o grupo navega para já no mainstream, é verdade, mas antes ser bom marinheiro nesta corrente e proporcionar prazer auditivo aos ouvintes do que ser mais um pretenso inovador que veleja sem rumo certo.

Tudo a seu tempo até porque antes de inovar é preciso primeiro aprender e absorver o que se fez para trás. O caminho faz-se caminhando...

3.º - Honestidade intelectual, musical e artística

Quem conhece Filipe Melo e os seus companheiros de combo sabe bem que o seu compromisso com a música e com o jazz em particular é um compromisso integral, que não cede a facilitismos. Até chegar a Debut cada um destes três músicos estudou, tocou muito e deu o melhor de si, razão pela qual agora tudo soa tão bem. De facto, este trio é como que um carro já bem experimentado e que sai de fábrica com a rodagem já feita, pronto a proporcionar viagens de puro prazer.

4.ª - O piano de Filipe Melo

Há quem o considere muito próximo de Oscar Peterson, mas isso, ainda que não seja integralmente verdadeiro, só pode constituir uma mais valia para Filipe Melo e para o jazz made in Portugal. Com efeito, quantos anos esperámos todos por ter um pianista português que tocasse a este nível? Anos e anos...

Estamos neste momento numa das mais ricas fases do jazz português, com vários músicos a representar várias escolas e géneros. Filipe Melo começou por onde se deve começar e por onde, aliás, começaram todos os grandes nomes do jazz: pela tradição e pelos standards.

O seu projecto está para já alicerçado no mainstream, facto que não o diminui, pois tocar mainstream bem é coisa que em Portugal não é propriamente corrente. Por outro lado, o próprio título do CD, Debut, deixa bem claro que estes são os primeiros passos. Não se pode, pois, julgar a carreira futura de Filipe Melo por este disco nem pretender que ela será sempre feita no mainstream.

Tal seria desconhecer o processo através do qual se fez a inovação no jazz. John Coltrane, por exemplo, percorreu muitos passos até chegar à iluminação e originalidade dos seus próprios projectos. E como ele muitos e muitos músicos. Aliás, na Escola de Jazz do Hot Club costumava dantes dizer-se: "Se queres um dia tocar como Coltrane ouve primeiro Coleman Hawkins". Ray Charles no início cantava como Nat King Cole e depois veja-se o que foi a sua carreira e o que ele trouxe de novo à música...

Não condenemos, pois, em vão um músico que segue o seu caminho, que começa por apreender as bases do jazz.

Com efeito, pretender que um novo jazzman seja logo um génio e tenha uma voz diferente é claramente irrealista e utópico. Ainda no ano passado entrevistámos Kenny Garrett que a este propósito dizia:

- Pensa que uma evolução ainda é possível no jazz ou estamos no fim do processo?

- Não sou a pessoa mais indicada para responder a essa pergunta mas espero que algo aconteça rapidamente para que os jornalistas deixem de me fazer essa pergunta! (risos) O ponto importante é que se alguma coisa acontecer as pessoas não vão dar por isso porque as pessoas estão à espera de algo drástico. Provavelmente apenas vamos ter pessoas a fazer pequenas coisas e no fim teremos o quadro completo.


5.º - A selecção dos temas

Filipe Melo escolheu para o seu primeiro registo um conjunto interessante e variado de temas clássicos do jazz, os quais garantem não só prazer auditivo pela identificação, como funcionam também como um desafio aos próprios músicos, tendo sido feito um claro investimento nos respectivos arranjos.

Sobre os temas e a sua interpretação vejamos o que diz Pedro Moreira nas liner notes do disco:

"Although this record is a Debut, it displays maturity because it is concise, because of his control of dynamics and because of the clarity of the phrasing. In this context, the arrangements assume a crucial role. The overall quality of the performance relies on the freshness of the arrangements, thereby escaping predictable solutions such as theme-solos-theme".

E já agora a sua apreciação geral sobre este CD, a qual subscrevemos e vem demonstrar que por detrás da aparente normalidade dos temas há uma capa de inovação e novidade (e ainda que seja preciso perceber de música para a detectar, ela não deixa ainda assim de supreender os ouvidos menos treinados com um certo "je ne sais quoi"):

"This CD has many qualities: the expression and good taste of the reharmonizations , the quality of the voicings and a very secure time feel".

CODA

Depois de termos ouvido este Debut vezes sem conta, com enorme prazer auditivo, estamos em condições de afirmar sem qualquer dúvida que este é um dos melhores discos de jazz produzidos entre nós.

Entendamos por jazz a designação que cobre o jazz clássico, com swing e baseado em standards; não o free jazz, a fusão com a música portuguesa ou africana ou ainda experimentalismos de outra natureza, os quais têm também o seu lugar neste imenso campo que é a música, e o jazz em particular, mas não servem naturalmente como balizas para avaliar Debut, pois não é aí que ele pretende inserir-se.


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