6 de dezembro de 2005

Palavras de quem sabe

Coube a Manuel Jorge Veloso, reputado crítico de jazz e autor de programas na rádio e televisão, apresentar ontem o livro "Duarte Mendonça: 30 anos de Jazz em Portugal".

Do discurso, proferido na FNAC do Chiado, aqui deixamos alguns excertos que nos parecem mais importantes de um todo que é basicamente uma viagem na primeira pessoa pela história do Jazz em Portugal:


"(...) Quando se traça o percurso de tal ou tal personalidade (em vários capítulos da sua actividade pública), é muito costume (e de bom-tom) sublinharem-se as convicções ou a coerência que ilustraram a carreira ou o percurso biográfico dessa personalidade.

Acontece que, muitas vezes (sobretudo entre nós, e com demasiada frequência), isso sucede quase sempre tarde demais, quando as pessoas que se pretende homenagear já desapareceram deste mundo, sendo de questionar porque razão tais elogios não surgiram bem antes, quando tal se impunha enquanto acto (presencial) de justiça.

E outras vezes, na boca de certas pessoas, palavras como «convicções» ou «coerência» soam-nos com a tónica de uma certa indisfarçável distanciação... (digamos) como o sublinhado de um «mal menor», no sentido de... «coitado, ele tinha esta ou aquela mania mas até era boa pessoa»... ou então... «ele era teimoso como um burro e incapaz de enxergar à sua volta», com isso (e no fundo) querendo demarcar-se (quem assim o diz) da relevância e do verdadeiro papel desempenhado pelo homenageado.

Vem isto a (des)propósito de Duarte Mendonça e do lançamento deste livro que fica a marcar as comemorações dos 30 anos da sua carreira profissional (enquanto produtor de conhecidos eventos relacionados com o jazz), uma personalidade (e felizmente um amigo!) cuja actividade se confunde, em grande parte, com muitos dos principais acontecimentos da história do jazz em Portugal, actividade justamente galardoada com a Medalha Municipal de Mérito Cultural pelo município onde reside e onde realizou grande parte desses eventos.

E vem a (des)propósito porque (no que se refere aos seus gostos pessoais em matéria de jazz), embora haja em Duarte Mendonça uma saudável, franca e confessada fixação em certas direcções estéticas do jazz (das quais se afirma mais próximo), ele o faz com uma genuinidade quase-provocatória, imbatível e até por vezes desarmante, não necessariamente por preconceitos estéticos mas porque (de uma forma, repito, genuína) ele acredita na firmeza das suas convicções e, sobretudo, entende que é «não vendendo gato por lebre» que se deve estar neste terreno movediço que é o da produção musical.

Ou seja, salvo raríssimas excepções (que geralmente ocorrem quando Duarte Mendonça opta, mais pelo palpite nas suas escolhas, do que por uma profunda e confirmada convicção), não há que enganar: goste-se ou não se goste, corra bem ou corra mal, ao decidirmos assistir a um evento musical produzido por Duarte Mendonça, há à partida (pelo menos) a certeza de que, com grande probabilidade ? e descontando a má forma ocasional, a fraca disposição ou os momentos de frouxa imaginação que podem acontecer mesmo aos maiores músicos ?, aquilo que se vai ver e ouvir em palco é exactamente aquilo que nos foi anunciado.

E quando tal não acontece, é certo e sabido que à saída, na rampa que (no Parque Palmela) conduz do Auditório ao parque de automóveis, lá está o Duarte a confidenciar... «é pá... desta vez fui enganado!», como aconteceu com um concerto recente... que não interessa aqui referir.

Para que justiça seja feita, tenho de reconhecer que sempre foi esta a postura de Duarte Mendonça enquanto amador de jazz e é precisamente esta (talvez) a sua maior qualidade: a de continuar a ser um verdadeiro amador de jazz mesmo a partir do momento em que decidiu tornar-se também um excelente profissional na produção de eventos nesta área musical. E isto, desde que pela primeira vez conheci o Duarte Mendonça, já lá vão 45/47 anos (como o tempo passa!).

Tal como para os jovens de hoje é natural que se possa conversar publicamente sobre qualquer assunto (sem receio de ser escutado ou espiado) ou exercer os seus direitos cívicos (sem correr o risco de ser perseguido por isso) ou optar (com liberdade de escolha e com conhecimento de causa) pelos seus mais variados gostos culturais ? também para os jovens amadores de jazz portugueses é difícil perceber e imaginar o que seria sentir e alimentar uma paixão pelo jazz há meio século atrás.

Na realidade, quantas escolas existem hoje espalhadas pelo país, especializadas no ensino do jazz? Quantos jovens músicos delas saem, para se juntar àqueles que foram sendo formados (na teoria e na prática) durante os últimos (digamos) 20 anos? E quantos destes não estiveram já (ou estão neste momento) com bolsas de estudo nos EUA? Ou quantas big bands é hoje razoavelmente possível constituir em Portugal?

De facto, é absurdo (e mesmo patético) continuar a dizer-se que pouco de diferente acontece hoje no domínio do jazz entre nós. E mesmo no campo discográfico - pesados o alheamento das principais editoras e todas as enormes insuficiências e limitações do mercado - como não sublinhar (apesar de tudo) o já interessante número de discos que vão saindo liderados por músicos portugueses?

E, no entanto, é preciso recordarmo-nos que, nesse tempo (no nosso tempo, há 45 anos, números redondos) eram praticamente inexistentes entre nós revistas sobre jazz (mesmo revistas estrangeiras que se vendessem nos quiosques ou nas livrarias); ou livros que tratassem da sua história ou nos revelassem as vidas dos principais músicos; ou mesmo discos que nos permitissem desvendar pela via da experiência auditiva (quantas vezes a forma mais esclarecedora e intensiva de o fazer) os caminhos estéticos de tal ou tal músico; e, sobretudo, concertos que nos permitissem esse acto único no jazz que é partilhar a invenção e a criação musical realizadas em tempo real, no próprio momento de ouvirmos esses músicos.

Não: nos nossos primeiros tempos, isto (que é hoje uma realidade natural entre nós, com a proliferação de concertos e festivais, com a possibilidade de ter acesso ao ensino, aos livros e revistas e mesmo à Internet para uma informação imediata e expedita sobre qualquer assunto relacionado com esta área musical) tudo isto era apenas uma aspiração e sobretudo um desespero, porque se tratava de bens culturais e possibilidades de percurso profissional em grande medida inexistentes e fechados entre nós.

À míngua de tudo isto, foram nesse sentido importantíssimos para mim (e permitam-se que aqui reflicta parte da minha experiência pessoal) os primeiros contactos com os amadores de jazz que fui encontrar no Hot Clube de Portugal quando, por volta de 1957/58, pela primeira vez desci as escadas daquele velho clube da Praça da Alegria.

Ali encontrei, falei e toquei com muitos dos que então continuavam os passos pioneiros de Luís Villas-Boas, começados a dar uma década antes, com idêntica convicção e paixão, mas ainda maior isolamento.
Amadores de jazz como (entre muitos outros) António José Veloso [hoje ainda em plena actividade nas jam sessions do Hot Clube!], José Luís Tinoco, Bernardo Moreira, Ivo Mayer e seu irmão Augusto, Luís Sangareau e, pouco depois, Paulo Gil, Justiniano Canelhas ou Rui Cardoso.

Estes eram, no fundo, uma primeira e segunda e terceira leva de amadores (e também, nalguns casos, músicos práticos) que me ajudaram a ver mais longe, a perceber (e depois a procurar transmitir aos outros) a especificidade e a fascinante capacidade de atracção de uma música tão espontânea quanto profunda e merecedora de estudo e de divulgação.

Nesses primeiros passos, sempre foi determinante e impor-tantíssima a audição de discos; e não posso esquecer-me dos incontáveis e frequentes fins de tarde e noites inteiras passadas na velha casa de solteiro de Duarte Mendonça (na Av. Defensores de Chaves), ouvindo (alto e bom som) os últimos discos que (já então) ele listava, encomendava e recebia com frequência ou que nos chegavam de amigos que se deslocavam ao estrangeiro.

Foi ali que aprendi, pela primeira vez, a ouvir Charlie Parker, Thelonius Monk, Miles Davis, Count Basie ou George Shearing e só mais tarde, no meu caso (curiosamente), Armstrong ou Ellington. Mas o percurso por mim percorrido na companhia de Duarte Mendonça, ao assistirmos aos primeiros concertos realizados em Portugal e às jam sessions que invariavelmente se seguiam até altas horas no Hot Clube, foi ainda um caminho de amizade por vezes calorosa, de companheirismo boémio (insubstituível nos nossos tempos de maior juventude) e de uma confiança mútua, raramente abalada por pequenos incidentes de percurso.

Costuma dizer-se que é em viagem prolongada que se conhecem melhor os amigos; e foi também numa viagem riquíssima de acontecimentos que julgo que nos conhecemos ainda melhor, o Duarte Mendonça e eu.

Foi quando, em 1963, viajámos os dois (ele sempre gostou de bons carros e sempre pôde comprá-los!) no seu MG descapotável, numa longa jornada até Comblain-la-Tour na Bélgica, para aquela que seria a primeira apresentação de um grupo português num festival internacional de jazz - o Quarteto do HCP - com passagem obrigatória pelo sul de França, concretamente Antibes, Juan-les-Pins (perto de Nice), para assistirmos (os dois) ao famoso festival de jazz daquela localidade.

E para vibrarmos, em particular, com aquele que terá sido o mais impressionante concerto das nossas vidas: a primeira apresentação na Europa do novo Quinteto de Miles Davis, com George Coleman, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, felizmente preservado em disco.

Embora seja bem mais recente a vivência do jazz por parte do seu autor, João Moreira dos Santos, é também destas pequenas e grandes histórias que o livro «Duarte Mendonça, 30 anos de Jazz em Portugal» (cujo lançamento agora se celebra) nos dá conta, em discurso sobretudo indirecto.

Mas uma das revelações mais importantes que este livro subitamente nos trás - num país em que sempre se desprezou (em todas as áreas) o gosto pela documentação e pela nossa memória colectiva - é aquela que nos reporta, agora de forma articulada e sistemática, ao elenco impressionante de realizações que o percurso profissional de Duarte Mendonça nesta área musical já conheceu até hoje e que uma simples consulta do índice remissivo no final do livro torna, afinal, esclarecedor.

Um elenco de realizações que tiveram repercussões mais importantes do que à primeira vista possa parecer. Na verdade, quantos jovens músicos portugueses não começaram a sentir-se atraídos e mobilizados para a prática do jazz, precisamente ao assistir aos concertos e aos festivais produzidos pelo Duarte Mendonça ao longo destes anos?

É preciso dizer-se, aliás, que quando se investigam as biografias de muitos dos músicos de jazz portugueses que hoje já estão na maturidade da sua carreira, chega-se invariavelmente à conclusão de que a maioria deles refere, como elemento essencial do seu currículo e da sua formação jazzística, a frequência dos workshops realizados em determinado período pela ProJazz, uma importante (e nos primeiros tempos rara) actividade paralela realizada (por exemplo) à margem dos festivais «Jazz Num Dia de Verão» e «Estoril Jazz».

Neste sentido - e para utilizar as palavras do seu próprio autor, o João Moreira dos Santos - este livro constitui uma verdadeira «viagem guiada» pelo que de mais importante se passou nas três décadas de actividade profissional de Duarte Mendonça (iniciada em 1974, ao lado de Luís Villas-Boas), admiravelmente ilustrada por impressionante cópia de elementos iconográficos através dos quais nos é apresentada a (também impressionante) galeria de grandes nomes do jazz que Duarte conheceu e com os quais privou pessoalmente, quer em Portugal quer nas suas inúmeras deslocações ao estrangeiro, especialmente aos EUA.

Uma galeria - é justo dizê-lo - para a qual contribuiu com um esmagador número de imagens captadas pela sua objectiva atenta um grande fotógrafo do jazz a nível internacional, o nosso (competentíssimo) João Freire, mas também (por exemplo) os talentos de Henrique Calvet e Rosa Reis num livro felizmente bem impresso (fazendo justiça à qualidade dos originais) e sem gralhas notórias (um pormenor importante) na designação dos fotografados (e eles são centenas!).

Os meus parabéns, portanto (e mais do que justos) ao João Moreira dos Santos, às entidades que ajudaram a que o livro fosse pensado e depois concretizado e publicado e, como é natural, ao próprio Duarte Mendonça.

Obrigado pela vossa atenção e... corram a comprar o livro!"


Site Meter Powered by Blogger