1 de junho de 2005

Se Portugal fosse uma big band...

Já cansado dos gurus da economia (e dos pseudo gurus mais os urubus e os cangurus intelectuais que saltam de solução milagrosa em solução milagrosa), o primeiro-ministro de Portugal teve uma ideia brilhante e logo mandou chamar o seu assessor mais directo:

- Oh Jaime Maria... estive aqui a pensar e do que nós precisávamos mesmo era dum maestro com batuta pesada! Alguém que fizesse na economia o que o Scolari fez na selecção. Enfim, mas com resultados, percebes...

O Jaime Maria, que por sinal até gostava delas (das batutas), pôs-se logo em acção e como era simpatizante do jézz foi desencantar um velho director de orquestra desempregado, o qual mandou vir em primeira classe em viagem aérea directa da Florida para Lisboa.

Volvida uma semana, o maestro John Black foi recebido com pompa e circunstância no aeroporto da Portela (as tias dizem P'tela, mas o aeroporto é o mesmo), como se de um messias se tratasse. Seguiu rapidamente para São Bento, onde o PM o esperava. Perdão! Fez esperar, que isto de ser PM também se afirma pelo tempo que se demora a receber os convidados... Pelo menos por cá, claro.

Quando o PM entrou na sala, todo ele falinhas mansas e desculpas -"estava em despacho, sabe como é... peço muita desculpa..." - John Black limitou-se a dizer:

- You missed the beat! You're out of time.

O PM, que até era um rapaz bem disposto e brincalhão, sorriu, fez as apresentações da praxe, a conversa de circunstância bem à portuguesa, tentou logo ali mudar as condições contratuais ("pois, sabe, o país está em crise, se aceitasse receber menos 1000 euritos por mês... enfim, era bom para eu mostrar à imprensa a minha capacidade negocial...") e preparava-se para continuar no chove no molhado quando John Black disse secamente:

- Cut the bullshit. Where's the score?

O PM encolheu os ombros e resignado virou-se para o Jaime Maria:

- Do que é que ele está a falar? Score, qual score? Mas ele é maestro ou treinador de futebol?!

Ora o compadre Jaime Maria, que apenas por acaso tinha relações familiares com o dito PM, havia ele mesmo em tempos idos tocado numa pequena fanfarra de bairro e sabia que score significava pauta, pelo que passou a explicar:

- A pauta... Ele quer a pauta... Quer saber que música queres para o país.

O PM pensou demoradamente, como quem demonstra que a coisa é complexa, coçou o queixo, ensaiou umas tímidas interjeições e acabou por se resolver:

- Bem, a pauta... isso é melhor falar com o Ministro da Economia ou com o das Finanças... Isso depois logo se vê, o que interessa é que haja pelo menos já um temasito ensaiado para o 10 de Junho. É que é o nosso dia nacional, sabe... O nosso 4 de Julho!

John Black abandonou São Bento com um estranho pressentimento de que algo o aproximava das suas distantes raízes ancestrais. Talvez fosse por o PM lhe ter falado nos Descobrimentos e de como ele devia usar esse motivo nas composições da orquestra.

No dia seguinte, John Black apresentou-se às 8h00 em ponto no Ministério das Finanças onde tinha a recebê-lo a senhora da limpeza que estava a acabar o turno e aguardava a empresa que vinha limpar os vidros.

- Oh tu aí, oh jeitoso, toca a mudar de farda que hoje há cá VIPES [sic] de visita e o chefe quer tudo a brilhar!

John Black limitou-se a esperar. Às 9h00 começaram a chegar os primeiros funcionários. Um cafézinho no bar, umas larachas sobre o futebol (pois claro!), uma ida à rua para ir à "Farmácia", mais umas larachas sobre automóveis e, finalmente, às 10h00 um destes funcionários, com um ritual estranho para Black, dignou-se dirigir-lhe a palavra:

- O Xôr, é pa quem?

Às 10h30, Black era recebido pelo senhor Ministro das Finanças, himself. Pois que a pauta logo se via, o importante era captar a identidade dos portugueses e mais os descobrimentos e tal e tal...

- Enfim... sejamos francos: eu percebo de números, o senhor percebe de notas e com o dinheiro que lhe pagamos... Ou seja, o melhor é decidir o senhor o repertório.

Dois dias depois, o maestro, de manhã cedo, aguardava sentado num velho armazém cedido pelo IPPAR. Os primeiros candidatos à orquestra chegaram enfim, meia hora volvida, juntamente com Jaime Maria, a quem Black desde logo apresentou os seus protestos:

- Aquela senhora ali - disse, apontando - recusa-se a mudar o estrado para onde eu indiquei porque diz que tem espandilose, está quase a reformar-se e além disso ninguém a informou disso por escrito...
- Ah, não se preocupe. Vou já mandar tratar disso!

Um a um, o maestro foi entrevistando os candidatos

- Experiência em big bands de jazz?
- Bem... eu toco numa charanga lá da terra... agora experiência propriamente dita...
- Dismissed! Next!
- Um momento - interveio Jaime Maria. É que há que atender a que esta banda fez a campanha eleitoral do nosso partido e a distrital lá da zona fez muita questão em que este senhor integrasse a big band... bem vê... Temos que ser flexíveis...
- Experiência em bing bands de jazz?
- Bem... eu toco baixo eléctrico nos Murros e Coices...
- Over my dead body! Next!
- Oh Mr. Black - interrompeu novamente Jaime Maria. É que este senhor é afilhado do nosso PM... bem vê, afinal foi ele que o contratou...
- Experiência em bing bands de jazz?
- Eu é mais o bailinho da Madeira...
- Next!
- Oh senhor Maestro, disse Jaime Maria. Este é da ilha dum senhor com que temos que ter algum cuidado...
- He can't swing!
- Ora isso... isso é o que menos importa. Entre o barulho da música e os aplausos ninguém nota...

Um mês depois a banda estava finalmente formada.

Os ensaios, porém, só poderiam começar algumas semanas mais tarde: na primeira semana faltavam as estantes, na segunda houve greve na função pública e noutra havia ponte e os músicos acabaram por meter férias.

Ora sucede que precisamente quando o maestro se julgava preparado para dar início aos ensaios eis que se vê inundado por reclamações:

- O naipe de trompetes recusava-se a ficar colocado na última fila porque, caramba, os rapazes eram todos de uma distrital importante do partido do Governo (até tinham eleito uma dúzia de deputados) e portanto não podiam ficar relegados para um lugar sem visibilidade pública.

- O naipe de trombones tinha-se sindicalizado e recusava-se a soprar uma nota que fosse sem ter direito a reforma antecipada, sistema de saúde próprio, 25 dias de férias e outras benesses.

- O naipe de saxofones estava interessado em vender ao naipe de trompetistas o seu lugar na primeira fila, mas queria que o maestro arbitrasse a negociata. Se assim não fosse ameaçavam só tocar quando saísse no Diário da República a resolução do Conselho de Ministros que criava a bing band.

O pianista recusava-se a tocar sem ter formação em acesso à internet e powerpoint...

O contrabaixista exigia um subsídio de hérnia por ter de tocar em pé...

- O baterista reclamava o "imperioso direito a um subsídio de surdez" e ainda a possibildiade "mais do que merecida" de comprar a bateria no final do leasing, isto ao preço da uva mijona, pois claro, "já que por essa altura já está toda batida!", como ele próprio dizia.

Estava a conversa neste nível quando surgiu o Presidente da Câmara para "dar uma palavrinha ao senhor Maestro"... Parece que no dia seguinte havia festança num bairro da Capital e era para ver "se o Senhor Maestro desenrascava qualquer coisita para eu ir inaugurar mais uma piscina" (numa escola sem ginásio nem dinheiro para pagar aos professores...). "Oh Senhor maestro, aquilo com música até ganhava outro impacto, hã?", rematou.

"Bem... e no dia 8 de Junho temos a inauguração do novo estádio de futebol dos coxos da parada..., também ficava lá bem uma musiquinha...". Depois, porém, inflectiu o seu discurso: "Olhe se calhar é melhor não porque a gente violou um bocadito o PDM e até oferecemos ao clube a possibilidade de construir prédios onde estava projectado um jardim... Não vá haver contestação da populaça... uns ingratos!".

O telefonema do Presidente de uma região autónoma, a dizer "esse maestro cubano aqui não toca nem uma nota! Esse monte de #%@£!", acabou por ser a gota de água e, sem conseguir ensaiar, John Black abandonou o edifício em fúria.

Já no carro ordenou asperamente ao motorista:

- Leve-me a uma florista e depois siga rápido para o túmulo do Pedro Álvares Cabral!

Ora estava Black justamente a sair do automóvel quando o telemóvel tocou. Do outro lado apresentava-se o PM em pessoa:

- Meu caro John Black... já sei das dificuldadesitas... terá de fazer o favor de nos perdoar... enfim, isto vai ao lugar...
- I'm going back to the US! You don't need a maestro, you need schools, education and less chit chat and football!
- Mas onde vai?
- Vou ao túmulo de Pedro Álvares Cabral depositar um ramo de flores.
- Mas porquê?
- Porquê?! Para lhe agradecer por ter ido parar ao Brasil e por não terem sido vocês a colonizar a américa do norte!
- Mas, mas... nós até já tínhamos mandado construir 10 novos centros culturais. Veja bem que até íamos construir um deles numa aldeia deserta, isto a bem da cultura e do jazz!
- Just put me in the next plane...


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