10 de março de 2005

A história do jazz por Villas-Boas

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[Luís Villas-Boas e Duarte Mendonça, Cascais Jazz/Jazz Num Dia de Verão 1986]

Em Abril de 1947, com apenas 23 anos de idade, Luís Villas-Boas deu início à publicação de uma completa história do jazz, editada numa revista do Jornal «O Século».

Neste dia em que se assinalam seis anos da sua morte, JNPDI! homenageia o pai do jazz em Portugal reeditando este importante, mas esquecido trabalho, na época absolutamente pioneiro, pelo que pode ser considerado o primeiro esboço de uma história do jazz escrita em Português.

Aqui fica pois o primeiro de vários capítulos, os quais iremos apresentar pela sequência original.


BREVE HISTÓRIA DO JAZZ (1)
Por Luís Villas-Boas

NEW ORLEANS - CRESCENT CITY

Na Louisiania, onde o Mississipi encontra o Golfo do México, existe um importante porto: New Orleans.

Nouvelle Orleans, como lhe chamavam os franceses que a fundaram, Nova Orleans, para os espanhóis que a embelezaram, ou New Orleans, para os americanos que a compraram e para os ingleses que por ela lutaram, não é no entanto um porto e uma cidade igual a tantas outras.

New Orleans tem qualquer coisa de diferente nos seus creoulos de boas maneiras, na diversidade da sua arquitectura de gostos tão diferentes, nas suas «grandes dames» descendentes dos franceses, no seu ar latino e sensual, onde, a par de uma religiosidade profunda, o jogo e o prazer imperam, na sua amálgama de raças, onde podemos encontrar franceses no «Latin Quarter», jugoslavos pescadores de ostras no «Bayou Country», negros trabalhadores e praticantes do «voodoo», italianos amigos de festas, espanhóis, alemães, gregos, judeus, filipinos, chineses, portugueses e, até, mesmo... anglo-saxões com um ar um pouco deslocado.

Mas ainda que tudo isto não bastasse para a tornar uma cidade única no mundo, o ter sido em New Orleans que o «Jazz» nasceu, seria suficiente para a individualizar.

Falar de New Orleans sem ter percorrido Rampart Street, ou Basin Street, sem ter saboreado os «Creole Pralines», sem ter estado nos pátios do «Latin Quarter», ou sem ter assistido ao «Mardi Gras», é o mesmo que pintar um quadro sem nunca ter visto o modelo.

Assim, será melhor que alguém que por lá andou, que viveu com os seus habitantes regulando-se pelo calendário católico e, portanto, encontrando sempre motivo para festas e celebrações religiosas, que falou com «papá» Laine e visitou a modesta «barber shop» de Buddy Bolden, vos fale desta cidade.

Escolhemos Charles Edward Smith, como poderíamos ter escolhido o europeu Robert Goffin, poeta e advogado que lá viveu três meses, ou, ainda, William Russell, pois poucos terão, até agora, realizado tão vasto trabalho de investigação sobre o «Jazz» em New Orleans como estes três críticos.

Mas vejamos o que noz diz Charles Edward Smith: «Uma maravilhosa e fantástica cidade. Uma cidade de cem aspectos. A expressão dura para o comércio e a suava para o amor. Rabiscando as costas de um envelope, enquanto uma rapariga de olhos escuros espera ao balcão. Cheiro de café queimado e som de navios. O ar profundo de uma vida triste e o contraído da miséria. Marchar, cantar, rir. O gargalhar desdentado do velho que se lembra de Buddy Bolden, em Bogalusa.

Cada escritor realiza a sua própria cidade. A cidade onde se vive bem e onde o espírito é livre, tecida pelo sonho do poeta. A cidade das bandas militares, bailes de sociedade e alegres festas nas margens do lago. A cidade de Lulu White e Joele Arlington e das palmeiras crescendo ali num espaço ainda vago. O homem magro que bebe demasiado, olhando para Congo Square, ingerindo a última bebida para se evadir da vista e do som.

«Come on and hear, come on and hear...»

Esta é a nossa cidade, não muito longe da propriedade que madame John legou, mas trazendo nela outro legado, o negro carregamento de um mercados de escravos «yankee», o marquês de Vaudreil, levantando um copo fino sobre um rendado punho, bebendo e partindo a taça em pequenos e sonoros fragmentos. Bamboula e taças que retinem. Canal Street , amarelecida pela noite, os seus dísticos e as cores de Carnaval, símbolos de passageira propriedade, como uma amante sorrindo ao seu dono.

Subamos Rampart ao lado do canal. Aí é a parte alta da cidade. O território de Bolden. Perdido à luz do gás. Talvez tivesse sido um lamaçal com ciprestes, mas já ninguém se lembra. No entanto, todos se recordam de Bolden e da sua loja de barbeiro, o seu pequeno jornal, onde se contavam os escândalos, e a sua orquestra de «ragtime», tocando uma nova música que ainda não tinha nome. (Dizem que o nome dessa música veio de Chicago da Rua 22; dizem que veio de uma calão Elizabethano, que significa «bater fortemente» e de uma palavra de calão americano que significava «nada vale, mas custa bastante dinheiro nos arredores da Rua 22»).

Não procure a águia do «Eagle Saloon». E não olhe para o «Mason's Hall», porque agora é um terreno para vender. Mas oiça atentamente, uma noite, na esquina de Ramport e Perdido, e ouvirá um encantado cornetim tocando um «uptown rag». É King Bolden chamando os seus filhos.

Se quiser saber porque é que o «Ragtime» (o primitivo) não era «jazz» e porque é que os «uptown rags» não eram apenas um novo «ragtime» mas tiveram que esperar por uma viagem rio acima para conseguir um nome, então ouça aquele cornetim. Há um pouco dele em Louis, em Joe Oliver e em Bunk. Talvez, se escutar atentamente, exista um pouco dele aqui nestas linhas. Talvez, se escutar atentamente (na esquina de Rampart e Perdido, onde o velho letreiro do «Eagle Saloon» caiu uma noite) compreenderá o que Bunk pretendia quando tocava assim, e o que Louis queria dizer e o que significavam as palavras de Buddy Bolden «não se pode tocar sem mim».

Talvez desça o Perdido, onde ainda hoje não há passeios e onde as estragadas casas mostravam a sua pobreza, com uns arbustos, flores ou uma magra palmeira na frente, tentando dizer o que a nobreza não pode...

«I know how to write!»

Mas talvez julgue que tudo isto nada tenha com o «jazz» ou com a cidade que gostaríamos de construir para si. Mas se for com os santos a um funeral (ao som de uma marcha lenta) talvez queira saber onde ele morava e onde morreu e porque lutou só por ter a pele negra ou branca, ou talvez um tom entre os dois? Talvez queira saber porque é que o morto veio do lado vencido da cidade (mas não foi vencido), para tocar em Storyville, onde queriam os «blues» lentos e tristes e os «rags» rápidos e reles, para tocar para um «gangster» em Pontchartrain (o rei de Chicago, que atirava o dinheiro à sua volta), para tocar nas bandas no da de carnaval e nos carros um Domingo à noite. Talvez volte mais atrás e veja os navios de escravos descarregarem a sua carga de carne e sangue, veja o ondular das plantações... confusas peles negras, cor de café, cor de açafrão, entrando na cidade do comércio, suave cidade das canções, marcial cidade da música, cidade do sonho, do riso de prata e cobre. E encontrará a resposta, saberá porque começou ali e não noutro sítio. Terá de pensar em New Orleans a cidade das bandas ou então será difícil de compreender porque tal não aconteceu no [ilegível] de Memphis, nas margens de Savannah ou na Costa do Golfo, com profundos e soluçantes «blues». Pensará na cidade das bandas, da ópera, dos funerais e dos bailes, pensará nos negros creoulos:

«Jazz came from uptown.
It was that raggedy[sic] uptown stuff».

Noutros sítios esqueceu-se a música que se trouxe e esqueceram-se dos versos. Na Carolina tudo o que restaria seriam os «blues» e uma banal canção de crianças, com versos transportados num barco de luxo ou criados com agudos sons fonéticos das crianças quando brincam. Em New Orleans ainda pode ouvir a bambaoula em Congo Square, no momento em que Buddy Bolden tocou o primeiro solo de cornetim. Pode ouvir ainda a bambaoula mas não vê uma nota de música escrita. Tudo o que ele aprendera punha de lado quando começava verdadeiramente a tocar. Era o que sucedia com Bunk: «Se escrevessem o que Bunk tocava, ele diria: julga que sou parvo, não sei tocar isso!».

Cajun ou creoulo, preto ou branco, os antigos ouviram. Ouviram porque as suas vidas era parte daquele viver, e porque a música não traça linhas de separação de cores. Brancos ou pretos, ou um tom entre os dois, ouviam atentamente quando a orquestra de Bolden apontava os seus trompetes para o Lincoln Park, porque ele era o rei.

O velho Willy Cornish contou-me que, quando a multidão se juntava em Lincoln Park para ouvir Robichaux, a orquestra de Bolden começava a tocar como se um fogo a inspirasse. Podia ver-se um brilho estranho na sua negra face e a sua voz parecia vir de longe, onde quer que os seus olhos estivessem pousados. Ele dizia que estava: «Callin' our chillun home» - chamando a si os seus filhos.


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