Percepções e concepções
A madeira. Tens de sentir a madeira. A madeira é toque, é tacto. No fundo, não passa de fibras. Mas, a madeira é vida. A madeira é civilização; feita de naus, de madeira, que chegaram ao Brasil e à Índia. E esses países são madeira. Toda a sua cultura popular é madeira. Depois há a madeira lisa, suave, pela qual desliza a mão, sensível. Uma madeira sem arestas! Haverá algo mais belo do que a arte esculpida em madeira?
A madeira é música. É, sobretudo, música. É vibração, é ressonância. Madeira e cordas; violino agudo ou contrabaixo grave. Madeira e pele; tambor e banjo. Madeira é música popular, o berimbau, é jazz numa palheta vibrante de Parker e é clássica, em Mozart. Toda a madeira vibra solidária com a orquestra numa sinfonia. Madeira. Madeira tocada em cima de um palco de... madeira. Claro!
Não. Nada se lhe compara. Definitivamente. A madeira tem finesse, tem classe, tem glamour. A madeira envelhece e guarda a história. A madeira é a história.
Em livros?
Não necessariamente. Nos móveis. Nos nós da árvores. E há tantos objectos históricos, em madeira. Já nem quero ir por aí...
Concordo que a madeira é música. É até mais do que isso. É som. A madeira range. E talvez por isso é o único material que revela a sua alma. O ferro apenas tilinta. É um som superficial e efémero. Já a madeira pode ressoar e perpetuar-se no tempo e no espaço. A experiência mais metafísica que tive foi justamente com a madeira. Estava sozinho numa velha estação de comboios no Algarve, por volta das onze da noite, e a única coisa que ouvia era o estalar da madeira dos carris. Era ao mesmo tempo arrepiante e excitante. ouvir gritar aqueles barrotes fortes e sentir o cheiro a comboio que retinham na sua essência. Há até uma amiga minha que mandou fazer a cama a partir de antigos barrotes de carris de comboio. O difícil é ignorar o cheiro típico dos comboios.
Para mim a madeira é árvore. Muitas árvores numa floresta tropical. Penso nela e ouço todos os seus habitantes selvagens como se estivesse lá. Há um macaco gritador que grita, há um pássaro que canta. E há todo o ambiente da magia do nascer do sol. Uma bruma ligeira, raios de luz por entre as árvores, insectos no chão e sons. Pequenos sons que não consigo referenciar. A humidade desliza pelos troncos das árvores e algum animal pisa delicadamente pequenos ramos que se quebram à sua passagem. Devo ter visto isto nalgum documentário. Ou talvez seja apenas o meu desejo de conhecer algum desses países africanos que ainda conservam quase intactas as suas florestas.
Eu não consigo separar a madeira da pólvora e logo chego à pistola. Depois, depois vejo os biombos que retratam a chegada dos portugueses ao Japão, com a pólvora e as espingardas que cuspiam fogo. Por acaso até são em madeira. E por aí, toda a história mundial desfila no meu imaginário. Vejo e ouço a tomada da bastilha, há uma espingarda, um fusil, que dispara e homens que carregam pólvora em barris de madeira estrangulados por apertadas cintas metálicas, as trincheiras em Verdum, soldados entre terra e madeira, o som de uma Mauser, de corunha de madeira, que ecoa nas ruas ocupadas de Varsóvia. Nesse sentido a madeira é história e já não a consigo trazer para os conflitos do presente. Interessante... o presente é ferro, é plástico. Se calhar é por isso que é tudo tão efémero e sem sentido.
O plástico não desperta os sentidos...
Pois. Não tem cor e a textura é irremediavelmente imperfeita e... plástica. É impossível fazer uma escultura em plástico. Falta-lhe o peso, ainda que tenha a forma. Falta-lhe sempre a arte, mesmo quando a forma pudesse ser trabalhada. O plástico não tem valor. É para deitar fora.
Estão a esquecer-se do papel! Para mim a madeira é papel. Troncos moídos transformados em pasta e que me trazem as notícias do dia ou os pergaminhos do prémio Nobel da literatura. Para mim a madeira é o cheiro do papel acabado de imprimir, com as tintas ainda frescas e as páginas imaculadas. É o ambiente de uma livraria numa tarde de inverno eu a demorar-me na procura de algo que me excite os sentidos. Lá está a questão dos sentidos...
Então e o vinho? O vinho é obviamente madeira. O vinho não existe sem a madeira! Para mim a madeira é vinho, é adegas, é o culminar da faina das vindimas. São as pipas a envelhecer, é Douro, é França é Itália. É a memória de um bom vinho servido à mesa num bom restaurante. Não diria luxo, mas sim prestígio.
Sabiam que o Grande Canyon antes de ser deserto estava repleto de árvores? Ouvi isto num documentário que passou um dia destes na televisão. E eu que quando lá estive imaginei que os habitantes de há séculos viam exactamente a mesma paisagem do que eu... Provavelmente no Saara e noutros desertos passou-se o mesmo. E então a o progresso da civilização era a madeira. Bem, esta visão é provavelmente melhor explicada por um ecologista ou por um antropólogo.
A madeira para mim, que sou mulher, é romance. É o som dela a crepitar numa lareira acesa num qualquer Inverno, junto a alguém que se ama ou a embalar a memória de um amor perdido. Nesse sentido a madeira é praticamente nostálgica. Às vezes é mesmo cruel porque nos reforça a solidão. Quando nada nos resta senão os móveis que nos olham com indiferença. Quando me separei apetecia-me queimá-los e apagar o passado!
Enfim, madeira... um cão corre atrás de um pau. Tão simples. Já nós vivemos dentro dela, pagamos com ela, sonhamos com ela e morremos nela sem nunca saber atrás de que pau corremos. Ou será que o fito de viver é simplesmente o acto de correr?
1 Comments:
escreve alguma coisa de jeito tonto do caralho
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