Zé Eduardo dirige a Orquestra Girassol em estúdio (25/06/1978).
Para o efeito, convidámos para a conversa Zé Eduardo, Urbano Oliveira (produtor executivo da gravação) e Jorge Costa Pinto (na época proprietário da editora Tecla, a primeira contactada para editar o EP).
O que começou por ser um artigo sobre um disco, terminou, todavia, por ser praticamente um pequeno ensaio sobre o advento das big bands em Portugal.
O pioneirismo de Jorge Costa Pinto
Fruto de vários eventos importantes - em que se destacam as parcerias com músicos estrangeiros de renome e as actuações em salas prestigiadas dos EUA e não só - várias têm sido as big bands portuguesas que têm dado que falar nos anos mais recentes, com especial destaque para a Orquestra de Jazz de Matosinhos e a Big Band do Hot Clube de Portugal, mas também a LUME, Orquestra de Jazz de Lagos, Orquestra Jorge Costa Pinto, Reunion Big Band e Orquestra Angra Jazz.
As origens das big bands (formações muito populares nos EUA entre os anos 20 e 50), remontam, em Portugal, à década de 60. Foi neste período, concretamente, em 1963, que Jorge Costa Pinto decidiu reunir uma orquestra com naipes de saxofones, trombones e trompetes e uma secção rítmica. A genese desta orquestra ficou intimamente ligada à RTP, como explica Costa Pinto: "1963, na RTP e no culminar de uma série de programas de jazz com octeto e sexteto, fiz proposta para organizar uma ‘big band’, na tradição das orquestras de jazz norte-americanas. Foi aceite e, com a colaboração dos melhores músicos profissionais portugueses, é concretizada no programa ‘Jazz no Estúdio A’. ‘Nasceu’ a primeira big band portuguesa exclusivamente para interpretar música de jazz, em Portugal – “Jorge Costa Pinto e sua orquestra”- assim anunciada". Desta formação faziam parte, entre outros, Domingos Vilaça (saxofone) e Carlos Menezes (guitarra), além do próprio Costa Pinto (líder e bateria).
Finda a participação na RTP, a orquestra dissolveu-se, mas não o sonho de Costa Pinto: "A minha ‘incursão’ seguinte nessa área da música, pela organização de big band, ocorreu vinte e cinco depois, de novo na RTP, em programa popular (1.2.3.) cujo tema versava o jazz". A orquestra, que participou também no programa "Quinta do Dois", integrava então músicos como Mário Laginha, Carlos Martins, Edgar Caramelo e Tomás Pimentel.
A big band renasceu no novo século, fruto do empenho de Costa Pinto e do impulso dado pelo Estoril Jazz "Em 2003 decidi ‘desafiar’ uns tantos colegas – quinze - que de imediato aderiram ao ‘projecto’ de organizar uma big band a fim de termos o gosto de tocar música de jazz, o que tem acontecido de vez em vez com início no Festival de Jazz do Estoril, a convite do produtor Duarte Mendonça".
Zé Eduardo e a Orquestra Girassol
Zé Eduardo em ensaio com a Orquestra Girassol
Fonte: Urbano Oliveira
Ana Paula, a vocalista da Girassol
Fundamental para o desenvolvimento da Girassol foi a fundação, em 1977, da primeira escola de jazz em Portugal - uma iniciativa de Zé Eduardo e Luís Villas-Boas - sediada no Hot Clube de Portugal: "Foi depois de me deparar com as gravíssimas lacunas que a maioria [dos músicos] tinham na sua formação musical e jazzística que lhes prometi fazer uma escola para eles e muitos outros que já se perfilavam no horizonte".
Entre os 12 membros da Girassol, sem contar com Zé Eduardo, contavam-se quatro saxofonistas (Carlos Bechegas, Luís Caldeira, Mário Gramaço e Manuel Garcia), três trompetistas (Laurent Filipe, Tomás Pimentel e Gabriel Évora), dois trombonistas (Hélder Ferreira e José Serro), um guitarrista (Armindo Neves), um baterista (Urbano Oliveira) e uma vocalista (Ana Paula).
Orquestra Girassol (1978).
1 - Urbano Oliveira (bateria); 2 - Zé Eduardo (líder, contrabaixo); 3 - Armindo Neves (guitarra); 4 - Hélder Ferreira (trombone); 5 - Ana Paula (voz); 6 - José Serro (trombone); 7 - Laurent Filipe (trompete); 8 - Tomás Pimentel (trompete); 9 - Carlos Bechegas (sax-alto); 10 - Luís Caldeira (sax-alto); 11 - Mário Gramaço (sax-tenor); 12 - Manuel Garcia (sax-tenor e soprano).
Gerir um projecto desta dimensão não era, porém, tarefa fácil, como recorda Zé Eduardo quando questionado por JNPDI sobre as principais dificuldades: "A disponibilidade das pessoas se juntarem para ensaiar (muitos estudavam outras coisas mais "normais"). Lembro-me de a minha mãe ter que sossegar a mãe do Laurent (que tinha então 16 anos), fazendo-a entender que aquela casa era decente e que o filho não se ia perder nas 'drogas'. Era também muito difícil arranjar trabalho para um grupo com aquelas dimensões".
Girassol em estúdio
Mário Gramaço e Manuel Garcia no estúdio Musicorde (25/06/1978).
A ideia de gravar a orquestra em estúdio partiu de Urbano Oliveira, então baterista deste conjunto e que veio a assumir o papel de produtor executivo do projecto discográfico: "Fui eu que comecei a falar no assunto. Entendia que era importante deixar alguma coisa registada, porque gostava muito do que estávamos a fazer. Felizmente, a ideia foi ganhando adeptos, apesar de inicialmente uma boa parte dos músicos, com vários argumentos, não achar oportuno".
Urbano Oliveira com a Orquestra Girassol
Com o país marcado pela saída da ditadura e pela fragilidade política, económica e financeira, a verdade que é que em 1978 estava-se muito longe da intensa e profissionalizada produção discográfica que se vive actualmente no jazz. Pelo contrário, gravar era ainda uma "ideia extravagante para a maior parte do pessoal da orquestra", recorda Urbano. É que não obstante a mediatização que o Cascais Jazz trouxera a este género musical desde 1971, só um reduzidíssimo leque de artistas portugueses ou residentes em Portugal tinha até então tido oportunidade de editar o seu trabalho em disco. Domingos Vilaça dera o pontapé de saída nos anos 50, Thilo Krassman seguira-lhe o exemplo nos anos 50/60 e Rão Kyao surpreendera em 1976 com Malpertuis.
Urbano Oliveira e Zé Eduardo estavam porém determinados a fazer história e, sobretudo, a vencer as dificuldades inerentes a este projecto pioneiro, como recorda o baterista e produtor: "Eu tinha quase a certeza que era a primeira vez [que uma big band gravava um disco em Portugal], daí o meu entusiasmo. O Zé Eduardo deu-me muito apoio. Foi aquele que desde o início mais entusiasmo demonstrou. Eu tinha bem presente que, de certo modo, era um atrevimento. Mas, se saísse bem, dentro das nossas limitações, poderia ser, no futuro, um registo interessante para biografia musical de cada um de nós e a História do Jazz em Portugal. Lembro-me de pensar que podia ser muito gratificante e estimulante mostrar às futuras gerações que, quando queremos, as coisas acontecem, desde que as façamos. Mas, é sempre bom por em relevo que, quando queremos que alguma coisa apareça feita, não basta ter força de vontade, é também indispensável ter vontade de fazer força…"
Mário Gramaço e Gabriel Évora no estúdio.
Os recursos técnicos eram, naturalmente, incomparáveis com a actual sofisticação digital, resumindo-se a um gravador AMPEX de 8 pistas alimentado por fita magnética de 1 polegada e a uma mesa de mistura TRIDENT ou TASCAM. Urbano Oliveira recorda ainda hoje o processo de gravação utilizado na época: "Dada a nossa inexperiência, tivemos que gravar por partes, digamos assim. Primeiro, gravámos a secção rítmica: bateria, baixo e guitarra, depois os metais. Talvez a peripécia a ser sublinhada tenha sido a dificuldade/cuidado que vi o Zé Eduardo ter na condução dos metais para os pôr a tocar todos certinhos por cima da secção rítmica".
Orquestra Girassol no estúdio Musicorde
O músico e produtor não guarda porém má memória dos parcos meios à disposição da orquestra: "Não posso dizer que os recursos técnicos tenham condicionado a gravação, mas na verdade eram muito diferentes dos actuais. Há, na história da música de jazz e pop dos anos 60/70 inesquecíveis gravações de qualidade com recursos que hoje parecem impossíveis. Houve um enorme e impressionante avanço na forma de tratar o som. Também é verdade que, com este gigantesco desenvolvimento, se pode fazer (e tem-se feito) muita batota. Naquele tempo tínhamos que “picar” ou seja, voltar a tocar total ou parcialmente por cima do que estava mal ou menos bem executado. Fazia-se também “corte e costura” ou seja, nalgumas situações, cortava-se literalmente a fita para a “colar” a outro segmento. Eram tarefas incomparáveis com o que se faz hoje com o computador em pouquíssimos minutos: gravar, apagar, escolher instrumentos e sonoridades, afinar notas desafinadas ou semi-tonadas, gravar por cima de loops, fazer copy/paste evitando repetir ao vivo o mesmo segmento musical dum instrumento, enfim, com a ajuda diversos e complexos programas (software) é possível servir a criatividade e o bom gosto dos que se dedicam a esta área: técnicos, compositores, músicos e produtores. Mas, não tenho ideia de termos “picado” ou ter havido “corte e costura”.
Zé Eduardo durante as gravações
Já Zé Eduardo recorda nos seguintes termos a sessão de estúdio única em que a Orquestra Girassol gravou: "Eu era músico de estúdio profissional (junto com o Armindo Neves) de forma que para mim foi mais uma sessão, com a diferença que quem a pagava era o nosso baterista -o Urbano- tínhamos que ser rápidos para não gastar muito...e quem dirigia era eu. Já tinha aprendido isso de ver e ouvir os maestros Thilo Krassman, Pedro Osório e Correia Martins dirigirem-me em incontáveis sessões de estúdio e televisão. Foram os meus primeiros mestres sem o saberem. Muito lhes tenho qaue agradecer".
Um disco improvisado
Realizada a mistura, tarefa que ficou a cargo de Zé Eduardo, em colaboração com o técnico de som, António Moniz Pereira, havia que encontrar uma editora disponível para apostar no jazz, o que não se adivinhava tarefa fácil para um jovem produtor: "Com excepção de uma ida, sem sucesso, com o Zé Eduardo, à editora TECLA – suponho que já em fase de encerramento – para “desafiar” o Maestro Jorge Costa Pinto para a edição, não contactei mais nenhuma editora. Pensava que seria perder tempo precioso que podia vir a fazer desanimar aqueles que, com jeitinho, já tinha convencido. Naquele tempo (1978), que editora se iria interessar por 13 putos que queriam gravar um disco com dois temas com uma orquestra a tocar Jazz?"
A Tecla era uma editora que tinha sido fundada por Jorge Costa Pinto no final dos anos 60, passando mais tarde a agregar também uma pioneia fábrica de discos em Portugal. O seu mentor recorda assim o contacto com a Orquestra Girassol: "Nos finais dos anos 70, Urbano Oliveira e Zé Eduardo, músicos entusiastas do jazz, envolvidos no ensino que acontecia no Hot Clube, propuseram á editora a gravação, e edição, da orquestra ‘Girasol’, organizada com músicos da escola e outros. A Tecla estava em fim de ‘carreira’, razão porque declinou essa proposta, encerrou nesse ano 1978".
A recusa por parte da Tecla ditou a edição de autor, como recorda Urbano Oliveira: "Embora sem qualquer experiência digna de nota, fui eu que tratei de tudo, excepto a capa/ilustração que foi generosamente desenhada pelo Pedro Baptista, suponho que por influência do Zé Eduardo. A fotografia foi da empresa Cinaris. Eu nunca tinha tratado de nada sobre a matéria. Pus-me a indagar aqui e ali, a este e àquele e fui descobrindo onde estavam as “pedras”, como costumo dizer. Depois, foi só caminhar sobre elas e atravessar um riacho de processos, tentando sempre não me “molhar” muito…" Finalizado todo o processo de produção, cada EP de 45 rotações saldou-se por um custo de 50 escudos, sendo cada unidade vendida exactamente a este valor. No total, foram investidos cerca de 50 contos na edição, o que era bastante dinheiro para a época.
Faces A e B do disco da Orquestra Girassol
O processo de comercialização foi, aliás, sui generis em face das circunstâncias em causa, o que impediu a chegada dos discos às lojas estabelecidas e o recurso à criatividade e a circuitos alternativos: "Como fui eu que entrei com a “massa” toda, tinha que ser eu a fazer a tal “força” para recuperá-la. Assim, só à minha conta, vendi seguramente entre 500 a 600 discos a familiares, amigos e conhecidos. Também pus amigos meus a vender a amigos deles. Não foi bem porta-a-porta, mas como trabalhava num banco e muitos dos meus colegas sabiam que me dedicava à música, chegava junto deles, pedia-lhe 50 escudos emprestados e, logo a seguir, quando tinha na mão o dinheiro, exibia na outra com o EP que lhes entregava dizendo: 'pronto, está pago!' Os tipos reclamavam, que não queriam, mas quando eu dizia 'Eh pá, sou eu que estou aí a tocar bateria!', eles, invariavelmente, diziam 'Ai sim, és tu?' e pronto, estava feito o negócio … Mas, tenho uma vaga ideia de que alguns dos outros músicos (muito poucos) terão vendido alguns discos, também muito poucos..."
Interior e capa do disco da Orquestra Girassol
Fonte: JMS/JNPDI
Volvidos mais de 30 anos, Zé Eduardo não tem dúvidas em fazer um balanço positivo do disco: "Foi mais uma pedrada no charco que fez as coisas andarem para a frente. Acho que o momento político e social, o Cascais Jazz e o que eu comecei com os então insipientes músicos de jazz, fez que Portugal, recém saído da sombra do fascismo, desse um grande passo e se pussesse a par dos outros países europeus que tinham tido 30 anos antes o Plano Marshall e a consequente americanização". Idêntica opinião afirma Urbano Oliveira, que olha para este disco "com orgulho", confessando-se "muito admirado com a ousadia de todos".
1978: O fim da utopia?
Orquestra Girassol em palco
Em Setembro de 1978, Rui Neves, então colaborador do jornal Sete, enunciava nas páginas deste jornal o desenvolvimento da orquestra e o seu inevitável fim: "A Orquestra Girassol, que chegou a colaborar activamente com a Juventude Musical Portuguesa em sessões de animação, foi uma das mais belas experiências levadas a cabo por músicos portugueses. Infelizmente, a falta de trabalho regular remunerado ditou a sua dissolução recente".
Zé Eduardo, por seu turno, recorda que "na sua última etapa a orquestra chegou a ter bastante trabalho e alguns dos seus músicos (então já com alguns conhecimentos) começaram a desenvolver os seus própios projectos. Por exemplo, o Quinteto de Pedro Mestre (1979) e o Quinto Crescente (79) são exemplo disso. Eu também queria que eles dessem mais de si pois, na sua maioria, estudavam muito pouco e porque eu próprio, já estava a escrever coisas mais arrojadas. O facto é que eles não davam de si e não as conseguiam tocar. Começaram as discussões e o final foi inevitável".
Ana Paula e Zé Eduardo.
Apesar de ter findado em meados de 1978, registando uma escassa longevidade, a Orquestra Girassol foi extraordinariamente importante e simbólica na afirmação do jazz made in Portugal, tendo lançado as bases para as actuais big bands. Comparar este projecto com os actuais é, porém, impossível, como defende Zé Eduardo: "Não se podem comparar. É como comparar o exército de Aljubarrota com a Brigada Aero-Transportada de Tancos. E mesmo assim, estes últimos, com o seu equipamento e tecnologia do século XXI, poderiam perder agora essa importante batalha da nossa História. Não sei se me faço entender..."
2009: o regresso à origem
Urbano Oliveira no estúdio Musicorde em Dezembro de 2009
Volvidos 31 anos da gravação do disco da Orquestra Girassol, desafiámos Urbano Oliveira a regressar ao estúdio da Musicorde e a fotografar para JNPDI as diferenças entre passado e presente, as quias, como as imagens testemunham, são praticamente nulas.
Estúdio Musicorde em Dezembro de 2009
Fonte: Urbano Oliveira
Estúdio Musicorde em Dezembro de 2009
JNPDI agradece a Urbano Oliveira (que disponibilizou o disco, as gravações da Orquestra Girassol que colocámos no Youtube e várias fotografias), Zé Eduardo (que cedeu as fotografias da orquestra) e Jorge Costa Pinto pela indispensável e generosa colaboração que nos concederam para a realização deste artigo.
6 Comments:
Clap, clap (palmas)!
Fabuloso! Isto sim, é serviço público.
Haja blogs, que a rádio e a imprensa são a desgraceira que se vê e ouve (da televisão nem falo...).
Obrigado e parabéns por todo o trabalho até aqui e pelo que há-de vir.
Muito obrigado pelas suas palavras. É sempre extraordinariamente importante receber reacção (sobretudo positiva) ao que se faz aqui pelo JNPDI para que a memória do jazz e da música não se perca no labirinto do tempo.
Subscrevo na íntegra o que escreveu muguele.
Para tudo isto, trabalho e disponibilidade não bastam. É preciso paixão, neste caso pelo Jazz e sua divulgação.
Caro João tenho seguido o teu Blog com todo o interesse. Tenho tentado evitar publicar jazz influenciado por ti e pelo JNPDI.
O teu trabalho como já foi dito é Excelente e é um autêntico serviço público naquilo que tem de mais importante, a divulgação de coisas novas (!?). Como diria uma amiga minha já falecida "Todos é que sabemos tudo !". Obrigado.
Ricardo Santos
Caro Ricardo,
Muito obrigado pelo teu comentário. Como sempre, é realmente importante para mim saber que consigo comunicar com os amantes de jazz e de música em geral.
Abraço e voltas sempre.
bons tempos com a orq. girassol.
um beijinho grande para todos da ana paula (paula carreira). agora ando pela pintura http://jnpdi.blogspot.com/2009/12/orquestra-girassol-primeira-big-band.html http://www.paulacarreira-pintura.com/index2.html
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