Hot Clube: O fim de um ciclo e uma nova oportunidade
Hoje abro uma excepção para escrever aqui na primeira pessoa do singular, a única que permite a emotividade para falar de uma parte de mim que ontem morreu em parte no incêndio no prédio do Hot Clube.
Findava a manhã quando soube da notícia por um jornalista amigo da RDP já que a preparação de um curso para ontem à tarde não me permitira ainda ouvir ou ver os noticiários do dia. A primeira reacção foi de choque, logo seguida de “isto talvez não seja bem assim…” Telefonei ao Luís Hilário, que gere a programação cultural e o bar do Hot desde há anos, e confirmei o pior: o Hot dificilmente voltaria a funcionar novamente naquele espaço.
E aquele espaço não é um espaço qualquer. É um prédio em que o clube se instalou há 55 anos – por sugestão de Augusto Mayer, braço direito de Villas-Boas no Hot – e por onde passaram grandes nomes do jazz contemporâneo. Afinal, quantos prédios, ou mesmo teatros de Lisboa e do país, se podem orgulhar de ter acolhido músicos como Count Basie, Thad Jones, Dexter Gordon, Sarah Vaughan, Sacha Distel, Sivuca, Vinicius, Pat Metheny, Tete Montoliu, Max Roach, Lee Konitz, Benny Golson e tantos outros?
A minha relação com o Hot começou no ano lectivo de 1987/88, data em que ingressei na escola para estudar contrabaixo. Numa época em que não havia internet nem telemóvel, só o acto de encontrar o Hot já era uma vitória! Para tal houve que lamber páginas amarelas e classificadas, fazer telefonemas, etc.
As aulas eram ainda leccionadas no próprio clube (leia-se em cima do palco), mas pouco tempo depois transitaram para o andar de cima. O tempo passou e de repente, por volta de 1990/91, encontrei-me integrado na direcção do Eng. Bernardo Moreira, que acabara de vencer as eleições.
Coube-me a pasta das finanças (tesoureiro) e um cabo de trabalhos, mas no fim de tudo até tenho algumas saudades daquele tempo. Tinha 20 anos e estava a fazer algo por um clube onde passava muitas noites desde os 17 e que me tinha dado grandes momentos com os concertos de músicos como Lee Konitz, John Abercrombie, Eddie Henderson ou a jam-session em que participou inesperadamente o genial Pat Metheny.
Fruto da tenra idade, e por muito mais que não vem ao caso, acabei por sair abruptamente da direcção em 1992. Entretanto, a vida profissional afastou-me por uns anos do clube, ao qual voltava sempre que um concerto mais tentador era anunciado e, a partir de 1995, como crítico de jazz do jornal A Capital. Em 1999, finda a parceria com este diário também já desaparecido, acabei por me apartar novamente da vida do clube, desta vez por muito mais tempo pois as funções profissionais assim o ditavam.
Até que por volta de 2002/2003 me sucedeu algo muito curioso e a que depois vim a perceber se chamava de serendipitismo. Num final de tarde, regressando a casa pela Avenida Marginal, quis virar à direita para Alcântara, mas um condutor mais agressivo não o permitiu, obrigando-me a seguir em frente em direcção a Algés…
Em vez de me irritar, decidi que muito provavelmente e misteriosamente alguma entidade que eu desconhecia queria que eu seguisse caminho por ali e posto isto aceitei de bom grado o novo percurso. Apercebi-me então, numa fracção de segundos, que ia passar em frente à escola do Hot Clube e veio-me à mente o pensamento/intuição que era tempo de curar a ferida aberta desde 1992.
Virei imediatamente à direita e dei comigo a entrar no edifício da antiga Standard Eléctrica, onde nunca tinha entrado. Sabia que era tempo de pedir desculpa ao então presidente (Eng.º Bernardo Moreira), ainda que soubesse que elas também me eram devidas. Ambos tínhamos errado, magoando-nos e criando uma brecha que durou mais de 10 anos. Desconhecia se ele estava presente ou se quereria sequer receber-me, mas arrisquei. Do que disse, resta-me pouca memória, mas sei que foi um passo importante e que fui, de certa forma, recompensado por tal gesto quando quatro anos mais tarde o Hot apoiou o meu livro sobre o seu fundador, o Luís Villas-Boas. Nessa época, em 2002/2003, não imaginava sequer que ia escrever tal livro e portanto sei que o meu acto foi apenas o de alguém que queria, com uma nova consciência e maturidade, encerrar um ciclo, desconhecendo se haveria outro sequer para se iniciar.
Se escrevo aqui estas linhas é porque hoje, 23 de Dezembro, o Hot está também perante o fecho de um ciclo, neste caso de 55 anos. O prédio da Praça da Alegria ardeu e o clube dificilmente aí voltará.
Há, todavia, duas formas de olhar para este acidente: podemos revoltar-nos porque nos obrigaram a seguir por um caminho que não desejávamos (a tal Estrada Marginal, que neste caso é a perda da velha cave)… ou podemos seguir esse caminho e abrir-nos para as novas possibilidades que ele traz. Essas possibilidades são a tão almejada requalificação do prédio (é contudo imperioso manter a fachada e o carácter do Hot) e um upgrade das funcionalidades e serviços do clube, incluindo um restaurante, museu, etc.
Há porém um senão: é que para isto acontecer é preciso, muito provavelmente, dar um autêntico passo de gigante. Esse passo é simbolizado pelo início de um novo ciclo no Hot Clube, um ciclo que passe por mais diálogo e pela abertura à sociedade civil e um ciclo que permita estabelecer mais sinergias e mobilizar mais vontades e recursos. De igual modo, é imprescindível que a comunidade do jazz se una e encontre pontos de convergência. “Now’s the Time”. Sem o primeiro passo, o Hot ficará sempre um anão e sem o segundo passo o mundo do jazz nunca falará a uma só voz e portanto não será ouvido pelo poder político nem levado a sério.
João Moreira dos Santos
23/12/2009
Hoje abro uma excepção para escrever aqui na primeira pessoa do singular, a única que permite a emotividade para falar de uma parte de mim que ontem morreu em parte no incêndio no prédio do Hot Clube.
Findava a manhã quando soube da notícia por um jornalista amigo da RDP já que a preparação de um curso para ontem à tarde não me permitira ainda ouvir ou ver os noticiários do dia. A primeira reacção foi de choque, logo seguida de “isto talvez não seja bem assim…” Telefonei ao Luís Hilário, que gere a programação cultural e o bar do Hot desde há anos, e confirmei o pior: o Hot dificilmente voltaria a funcionar novamente naquele espaço.
E aquele espaço não é um espaço qualquer. É um prédio em que o clube se instalou há 55 anos – por sugestão de Augusto Mayer, braço direito de Villas-Boas no Hot – e por onde passaram grandes nomes do jazz contemporâneo. Afinal, quantos prédios, ou mesmo teatros de Lisboa e do país, se podem orgulhar de ter acolhido músicos como Count Basie, Thad Jones, Dexter Gordon, Sarah Vaughan, Sacha Distel, Sivuca, Vinicius, Pat Metheny, Tete Montoliu, Max Roach, Lee Konitz, Benny Golson e tantos outros?
A minha relação com o Hot começou no ano lectivo de 1987/88, data em que ingressei na escola para estudar contrabaixo. Numa época em que não havia internet nem telemóvel, só o acto de encontrar o Hot já era uma vitória! Para tal houve que lamber páginas amarelas e classificadas, fazer telefonemas, etc.
As aulas eram ainda leccionadas no próprio clube (leia-se em cima do palco), mas pouco tempo depois transitaram para o andar de cima. O tempo passou e de repente, por volta de 1990/91, encontrei-me integrado na direcção do Eng. Bernardo Moreira, que acabara de vencer as eleições.
Coube-me a pasta das finanças (tesoureiro) e um cabo de trabalhos, mas no fim de tudo até tenho algumas saudades daquele tempo. Tinha 20 anos e estava a fazer algo por um clube onde passava muitas noites desde os 17 e que me tinha dado grandes momentos com os concertos de músicos como Lee Konitz, John Abercrombie, Eddie Henderson ou a jam-session em que participou inesperadamente o genial Pat Metheny.
Fruto da tenra idade, e por muito mais que não vem ao caso, acabei por sair abruptamente da direcção em 1992. Entretanto, a vida profissional afastou-me por uns anos do clube, ao qual voltava sempre que um concerto mais tentador era anunciado e, a partir de 1995, como crítico de jazz do jornal A Capital. Em 1999, finda a parceria com este diário também já desaparecido, acabei por me apartar novamente da vida do clube, desta vez por muito mais tempo pois as funções profissionais assim o ditavam.
Até que por volta de 2002/2003 me sucedeu algo muito curioso e a que depois vim a perceber se chamava de serendipitismo. Num final de tarde, regressando a casa pela Avenida Marginal, quis virar à direita para Alcântara, mas um condutor mais agressivo não o permitiu, obrigando-me a seguir em frente em direcção a Algés…
Em vez de me irritar, decidi que muito provavelmente e misteriosamente alguma entidade que eu desconhecia queria que eu seguisse caminho por ali e posto isto aceitei de bom grado o novo percurso. Apercebi-me então, numa fracção de segundos, que ia passar em frente à escola do Hot Clube e veio-me à mente o pensamento/intuição que era tempo de curar a ferida aberta desde 1992.
Virei imediatamente à direita e dei comigo a entrar no edifício da antiga Standard Eléctrica, onde nunca tinha entrado. Sabia que era tempo de pedir desculpa ao então presidente (Eng.º Bernardo Moreira), ainda que soubesse que elas também me eram devidas. Ambos tínhamos errado, magoando-nos e criando uma brecha que durou mais de 10 anos. Desconhecia se ele estava presente ou se quereria sequer receber-me, mas arrisquei. Do que disse, resta-me pouca memória, mas sei que foi um passo importante e que fui, de certa forma, recompensado por tal gesto quando quatro anos mais tarde o Hot apoiou o meu livro sobre o seu fundador, o Luís Villas-Boas. Nessa época, em 2002/2003, não imaginava sequer que ia escrever tal livro e portanto sei que o meu acto foi apenas o de alguém que queria, com uma nova consciência e maturidade, encerrar um ciclo, desconhecendo se haveria outro sequer para se iniciar.
Se escrevo aqui estas linhas é porque hoje, 23 de Dezembro, o Hot está também perante o fecho de um ciclo, neste caso de 55 anos. O prédio da Praça da Alegria ardeu e o clube dificilmente aí voltará.
Há, todavia, duas formas de olhar para este acidente: podemos revoltar-nos porque nos obrigaram a seguir por um caminho que não desejávamos (a tal Estrada Marginal, que neste caso é a perda da velha cave)… ou podemos seguir esse caminho e abrir-nos para as novas possibilidades que ele traz. Essas possibilidades são a tão almejada requalificação do prédio (é contudo imperioso manter a fachada e o carácter do Hot) e um upgrade das funcionalidades e serviços do clube, incluindo um restaurante, museu, etc.
Há porém um senão: é que para isto acontecer é preciso, muito provavelmente, dar um autêntico passo de gigante. Esse passo é simbolizado pelo início de um novo ciclo no Hot Clube, um ciclo que passe por mais diálogo e pela abertura à sociedade civil e um ciclo que permita estabelecer mais sinergias e mobilizar mais vontades e recursos. De igual modo, é imprescindível que a comunidade do jazz se una e encontre pontos de convergência. “Now’s the Time”. Sem o primeiro passo, o Hot ficará sempre um anão e sem o segundo passo o mundo do jazz nunca falará a uma só voz e portanto não será ouvido pelo poder político nem levado a sério.
João Moreira dos Santos
23/12/2009
2 Comments:
Meu prezado João,
Solidarizo-me com os irmãos portugueses, por conta de tão lamentável episódio.
Sua postagem comoveu-me muito e mostrou que, para alguém de espírito elevado, sempre é possível consertar os eventuais erros do passado e curar as feridas.
Que o Hot Club de Portugal possa reerguer-se das cinzas e promover, novamente e naquela mesma casa repleta de história, os tempos gloriosos!
E que entre aquelas paredes ecoem novamente os sons produzidos por aqueles que fazem do jazz a nossa forma de arte superior.
Um fraterno abraço e não esmoreça: Portugal, que tanto ama o jazz, certamente saberá responder à altura do desafio, e apesar desse momento doloroso, o Hot Club haverá de continuar a escrever a sua belíssima história!!
Estou desolada.
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