23 de setembro de 2009

Villas-Boas explica num artigo até agora desconhecido:
Como se deve ouvir Jazz ?

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Vamos responder à questão em título com a divulgação de um artigo que, tudo indica*, foi escrito por Luís Villas-Boas - a autoridade máxima no jazz em Portugal - e que descobrimos há alguns dias no decurso das investigações intensivas que vimos fazendo desde 2003 sobre a história do jazz em Portugal, da qual já resultaram 4 livros inéditos e vários artigos de fundo.

"Como se deve ouvir a caluniada música de «JAZZ»" remonta a 1947, tendo sido publicado originalmente na revista O Século Ilustrado de Agosto deste ano.

Tem a palavra o então jovem (23 anos) Luís Villas-Boas, mas não sem antes realçarmos que o artigo tem obviamente várias passagens marcadas pela época em que foi escrito e, sobretudo, pelo tipo de jazz que então se ouvia.

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É evidente que se existe um verdadeiro «jazz», também existem formas adulteradas que pretendem passar por boas. Esse é o primeiro princípio a observar no desenvolvimento deste assunto. Os dois tipos mais comuns de adulterações são: o chamado «jazz» sinfónico e os «fox-trots», cantados e dançados nas fitas musicais, que tão insistentemente são impingidas nos nossos cinemas. Para o primeiro caso intentou-se a produção de uma música híbrida, mediante a fusão de dois géneros totalmente distintos, com o desastroso resultado que é de imaginar e para o segundo (de que são exemplo as orquestras de Guy Lombardo e Eddy Duchin, sempre; e as de Artie Shaw, Tommy Dorsey e Benny Goodman, muitas vezes) dá-se o nome de «jazz» que, embora modesta, é uma música sincera e digna, a retalhos musicais desprovidos por completo de qualquer valor estético.




Originalidade e interpretação criadora

Se considerarmos somente aquilo que é próprio de genuíno e verdadeiro «jazz», ver-se-á facilmente que dentro dele não existem nenhuma[s] daquelas formas.

No «hot jazz», o fundamental é a inversão dos papéis desempenhados pelo autor e executante. Com efeito: na música em geral o compositor concebe a obra e os executantes procuram interpretá-la o mais fielmente possível, desempenhando assim um papel de certo modo secundário. No «jazz», pelo contrário, o compositor limita-se a subministrar uma melodia que servirá de esquema sobre o qual o executante criará frases novas e introduzirá elementos inexistentes no original; todos eles de acordo com o seu estado de espírito no momento da execução. Esta é a diferença radical que existe entre a música chamada clássica e o «hot-jazz», constituindo como consequência mais importante, pelo menos em princípio, o facto de, em «jazz» pouco interessar o nome do autor, enquanto que o do intérprete é fundamental na existência artística da obra.

Isto quer dizer - falando em linguagem clara - que o elemento primordial no «jazz» é o executante e a improvisação que este realiza.

Por isso mesmo, para que a improvisação seja facilitada, os músicos devem ser poucos, mas altamente competentes e inspirados.

***

Uma vez que fizemos notar a importância que a improvisação tem, assinalemos as características que permitem dizer quando um músico faz «jazz» a improvisar... e quando não.

Em primeiro lugar, no «jazz» há um notável predomínio da harmonia sobre a melodia. Escute-se ao acaso uma gravação de Duke Ellington, por exemplo, e compreender-se-á, em seguida, por que todos o acham mais aparentado com Wagner do que com Verdi - ressalvando, como é necessário, o exagero da comparação.



No segundo caso, o «jazz» é música essencialmente rítmica. Isto não significa que ele seja só ritmo sem mais nada; quer apenas dizer que é impossível a existência de «jazz» quando falta um ritmo poderoso e sustenido [sic].

Outras características fundamentais do genuíno «jazz» são a simplicidade, a ausência de efeitos rebuscados e o emprego de uma técnica musical simples e desprovida de subtilezas.

O valor da improvisação

A improvisação realizada pelo executante é, como já dissemos, a pedra fundamental. Ela é, na realidade, o próprio espírito desta música e um dos seus maiores atractivos. Quando um bom instrumento improvisa sobre uma base rítmica apropriada, sem empregar tecnicismos e rodrigiuinhos, tratando-se unicamente de expressar com sinceridade os seus sentimentos na altura da execução, surge o verdadeiro «jazz».

É agora chegado o momento de mostrarmos como se produz o improviso e quais são os elementos que se requerem para ele exista. Para tal explicação é indispensável aludir, antes de mais nada, ao papel desempenhado pelas diferentes secções de uma orquestra e descrever em seguida a sua maneira de executar. Vamos por partes.

Em primeiro plano coloquemos a secção rítmica composta por: bateria, piano, guitarra e contrabaixo. A missão desta parte da orquestra é proporcionar o ritmo básico de «jazz», sobre o qual os elementos melódicos hão-de criar as suas improvisações. O baterista - cuja principal missão dever ser: conduzir um ritmo sóbrio e persistente - é o mais importante dos executantes desta secção, àparte o pianista.

Este tem um duplo papel, já que o piano, além da sua importantíssima contribuição rítmica, possui enormes probabilidades, considerado sob o ponto de vista melódico. A guitarra e o contrabaixo empregam-se principalmente para enriquecer o fundo rítmico, dando colorido e o interesse tonal, graças aos amplos recursos de que dispõem, neste sentido.

A secção melódica, que constituirá o seu edifício musical sobre a base subministrada pela rítmica, é formada por dois tipos de instrumentos: os de canas (clarinetes e saxofones) e os de cobre (trompetes e trombones).

Supunhamos agora uma pequena orquestra interpretando uma melodia qualquer.

A secção rítmica será formada por: piano, bateria, guitarra e contrabaixo; a melódica estará constituída pelo clarinete, sax-tenor e trompete.

Música, maestro

Os instrumentos rítmicos começam o seu labor enquanto a trindade mencionada em segundo lugar executa o primeiro e segundo [chorus] tal como foram descritos pelo autor da partitura. Imediatamente, enquanto o ritmo prossegue, invariável, os instrumentos, a secção melódica executa um coro a solo. É aqui que a improvisação principia. Mediante ela, o solista, seguindo as linhas gerais da melodia que está executando e usando-a à maneira de guia, procura traduzir artisticamente, pela forma mais sincera e expressiva, o seu estado de espírito, empregando para tal conseguir no mais alto grau, todos os recursos que a sua imaginação lhe sugira. Quando o primeiro solista termina, outros se lhe seguem: cada um improvisando sempre de acordo com a sua própria mentalidade artística e o carácter do instrumento que toca. Este trabalho sugere também mudanças de ritmo (coisa que a secção melódica faz continuadamente, enquanto a rítmica se mantém de uma maneira uniforme), segundo esse solista julgue conveniente.

Para finalizar, os solistas improvisam colectivamente; improvisação que, como se depreende, apresenta sempre sérias dificuldades, tanto para quem executa, como para quem ouve. Para o executante, porque deve estar sempre de ouvido atento ao ritmo básico e à improvisação dos companheiros, pois que toda a beleza da improvisação colectiva depende fundamentalmente da existência de certa harmonia entre o ideado [sic] por cada instrumentista; para quem ouve, porque tem que seguir o ritmo e simultaneamente prestar atenção às improvisações de cada um dos instrumentistas e às relações existentes entre elas.

Amostras excelentes, que permitem comprovar como se realizam as improvisações deste género, são as que foram gravadas por Louis Armstrong e seus «Hot Five» e as dos pequenos conjuntos de executantes, dirigidos por Red McKenzie, Bud Freeman e Pee-Wee Russell.



* * *

O facto da improvisação constituir a mais importante característica do «jazz», faz com que exista[m] entre ele e a outra música, convencionalmente chamada clássica, diferenças de abismo.

Neste espécie de música, uma vez composta a obra, está terminada toda a criação artística. Falta apenas encontrar um intérprete. Decerto que esse intérprete nem sempre será um Menuhin, um Horowitz ou uma Suggia; mas nunca será impossível conseguir um executante sofrível, que nos permita apreciar, melhor ou pior, o pensamento musical do autor.

No «jazz» as coisas, como já se disse, sucedem de maneira diferente: quem cria é o executante ao improvisar e o nome do compositor, (autor quase sempre de melodias vulgares de nulo interesse musical) é de mínima importância.

A improvisação, que é puro sentimento e, por consequência, exclusivamente temporal, é a genuína alma do verdadeiro «jazz». Talvez por isso mesmo esta música estranha, sempre diferente de instante para instante, só pelos poetas pode ser compreendida e... executada. O «jazz» não está ao alcance de qualquer pessoa. Os bons ouvintes não abundam.



* 1) Havia na época poucas pessoas em Portugal habilitadas a escrever, com conhecimento de causa, um artigo de opinião sobre o jazz (tirando LVB, praticamente só Pozal Domingues, que não escrevia para esta revista); 2) O estilo redactorial deste artigo - e as suas ideias principais - tem claríssimas semelhanças com a linguagem usada por LVB nos artigos por si assinados, a começar no título. 3) O artigo foi publicado numa revista "irmã" de uma publicação para a qual LVB escrevia regularmente; 4) LVB fez uma autêntica cruzada para distinguir o que considerava verdadeiro e falso jazz , preocupação que está explícita neste artigo;


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