Miles Davis em Portugal
Miles Davis no Cascais Jazz, em 1971
Miles Davis no Cascais Jazz, em 1971
Miles Davis actuou por quatro vezes em Portugal entre 1971, quando abriu o Cascais Jazz, e 1991, ano que marcou também o seu adeus à vida. Em todas as ocasiões foi igual a si mesmo: um mestre da trompete e da arte de improvisar, alheado de tudo o que fosse além da sua música e da sua arte.
Quando em 1971 Miles Davis, aos 46 anos, pisou pela primeira vez território nacional era já uma estrela não do jazz, mas da música de massas, tocando as audiências do rock e da pop com as suas experiências de fusão entre géneros musicais. O auge da sua popularidade tinha sido atingido apenas um ano antes, quando na sua actuação no célebre Festival da Ilha de Wight (Reino Unido) partilhara o cartaz com os gigantes The Who, The Doors, Sly and the Family Stone, Joni Mitchell e Jimi Hendrix, perante nada menos do que 350 mil espectadores.
Mas onde estava agora o consagrado monstro do jazz, autor de discos míticos como Birth of the Cool, Kind of Blue e Porgy and Bess? Provavelmente vivia apenas na sua atitude em palco e no som sublime da sua trompete, já que o divórcio de Miles com a sua música de sempre havia começado em finais dos anos 60 quando as vendas dos seus discos caíram abruptamente (cerca de 50 por cento), prejudicadas pelo advento do free-jazz e pela explosão do rock, e o trompetista se encontrava não raras vezes a tocar em clubes com cerca de 40 pessoas…
Miles não estava pronto para sair de cena, mas sabia que tinha de encontrar um novo som para chegar à nova geração que ia a eventos como o Woodstock e por isso ouvia agora sobretudo músicos como Hendrix (que muito o impressionava e com quem esteve para gravar em estúdio), James Brown e Sly Stone, procurando sincronizar-se com a música do momento.
Consequentemente, as mudanças na sua banda eram inevitáveis e os músicos iam-se sucedendo ao longo do tempo – isto enquanto Miles incorporava novos instrumentos, como a guitarra eléctrica e o piano eléctrico, rompendo com o passado. «O piano acabou. É um instrumento antiquado. Não quero voltar a ouvi-lo. Pertence a Beethoven – não é um instrumento contemporâneo», afirmava então. Em 1969 gravava o disco da viragem, Bitches Brew, considerado o percursor da fusão. Pouco depois do seu lançamento, em 1970, atingia o top 40 e já tinham voado das prateleiras das discotecas cerca de 70 mil cópias, valendo-lhe o seu primeiro disco de ouro. Miles sabia que este era o seu novo caminho e em breve estava a actuar pela primeira vez em palcos de rock, como sucedeu nos célebres concertos realizados (e gravados) no Fillmore, em São Francisco.
Curiosamente, o mago da trompete deslocava-se a Portugal para um festival da música que o havia consagrado, o Cascais Jazz – nesse ano iniciado por Luís Villas-Boas, João Braga e Hugo Lourenço – mas não tocaria jazz, o que causou natural desilusão entre os seus admiradores mais antigos e incondicionais. Contudo, ciente do seu valor e da sua popularidade e importância (para mais, acabara de ser eleito «Jazzman» do ano pela revista Downbeat), Miles trocou as voltas à organização do evento quando anunciou a João Braga que queria ser ele, e não Ornette Coleman – que havia realizado a revolução do free-jazz e era então um músico de referência como inovador e pioneiro – a abrir o Cascais Jazz. «Ele disse-me uma coisa que nunca mais esqueci: “Este é o primeiro festival de jazz em Portugal e quero ser eu a abri-lo. Os outros só podem tocar a seguir a mim”». As exigências de Miles não se ficaram por aqui, incluindo um chauffeur branco (fardado a rigor, com boné, luvas brancas e dragonas), um «sparring-partner» para servir de saco de pancada às suas ambições de boxeur (na verdade foram dois, porque o primeiro «voltou-se» ao trompetista e João Braga teve de ir à Mouraria arranjar «um tipo mais velho» que não oferecesse mesmo resistência…), uma suite em hotel de luxo, nove quartos simples em hotel de primeira classe, cinco automóveis e uma camioneta para transporte de equipamento (cerca de duas toneladas!).
Caprichos satisfeitos, por volta das 22h00 do dia 20 de Novembro Miles Davis subia ao palco do Pavilhão do Dramático e tinha a seus pés cerca de 12 mil pessoas – incluindo alguns notáveis da música portuguesa, como Amália Rodrigues, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira – muitas delas convencidas de que iam ouvir jazz, convicção logo refutada quando Miles soprou as primeiras notas numa trompete ligada a um pedal de efeitos (wah-wah e volume) para, como revelaria na sua autobiografia, se aproximar do som de Jimi Hendrix. A acompanhá-lo estavam seis jovens, então, praticamente desconhecidos do grande público: Keith Jarrett (piano eléctrico), Gary Bartz (saxofone), Michael Henderson (baixo eléctrico), Don Alias e James Foreman (percussão) e Leon Chandler (bateria). Em palco, o septeto debitava uma música predominantemente funky e eléctrica, baseada em discos como Bitches Brew, Black Beauty, Live at the Fillmore East e Live Evil, e apesar de Jarrett ter desde logo captado a atenção do público e da imprensa – com o Diário de Lisboa a informar na crítica ao festival que um dos seus solos «marcou profundamente toda a assistência, absolutamente conquistada» – as atenções estavam obviamente centradas no trompetista. E a primeira impressão que saltava à vista era a imagem pouco clássica de Miles. Diniz de Abreu descrevia assim, no Diário Popular, a sua nova indumentária: «Colete de pele preto, camisa da mesma cor, calça verde acetinada, muito justa, um lenço ao pescoço, caído em duas pontas; cinto dourado; botas prateadas; óculos escuros».
Estava claro que também no visual Miles Davis se recusava a ficar preso ao passado e era agora, em todos os sentidos, uma verdadeira estrela. E se ao longo da sua carreira sempre se tinha distinguido por uma peculiar atitude em palco, tocando não raras vezes de costas para o público, a sua presença e a sua linguagem corporal assumiam ainda maior importância no momento em que se direccionava para as massas e para um público sedento de carisma e revolução. Na revista O Século Ilustrado Maria Antónia Palla escrevia após o concerto: «Quando Miles pára e deixa tocar o seu conjunto, fica a um canto do palco, o corpo inclinado para a frente, as mãos fixadas nos joelhos, balançando-se como um felino selvagem pronto a saltar sobre a presa. O rosto cerrado, sem deixar transparecer a menor emoção, fixa o olhar num ponto indeterminado. (…) Numa hora passada de exibição, nem um sorriso. Como se o público não contasse, como se a multidão fosse um inimigo potencial». Mas nem todos eram anónimos entre os cerca de dez mil espectadores. No meio do público, de gravador em mãos, estava outro trompetista e gigante do jazz, Dizzy Gillespie, que referia estar a gravar o concerto para ver se percebia depois o que Miles estava a tocar em palco…
Música à parte, Miles Davis era também mais uma das estrelas da música que se tornara dependente das drogas. João Braga recorda um facto que chamou a sua atenção: «A água que escorria das costas dele durante o concerto era algo inumano, certamente por causa das profaminas». A verdade é que antes de actuar Miles solicitara a Braga uma elevada quantidade deste medicamento tendo, como este recorda, «engolido sem se deter as três caixas» providenciadas, mas isto só depois de sair do armário da suite do Hotel Palácio, no Estoril, onde se encontrava fechado em meditação. Não era pois de admirar que no final do concerto mal conseguisse articular uma frase, não dirigindo mais do que um seco obrigado a Villas-Boas, que o esperava nos camarins, depois de este ter deixado o palco com a trompete erguida em sinal de agradecimento e satisfação por esta sua «prima nocte» em Portugal.
BLITZ 09
Artigo completo e mais informação na BLITZ de Março.
Miles e Foley no Coliseu de Lisboa (1989)
Texto de João Moreira dos Santos
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