António Barros Veloso:
«A Festa do Jazz foi uma manifestação musical excelente»
JNPDI! falou com o Dr. António Barros Veloso, um dos membros do júri que classificou os vários combos, e com ele passámos em revista os principais temas do "exame". Médico de profissão e pianista por devoção, Barros Veloso é um dos pioneiros do jazz em Portugal, tendo começado a tocar nos anos 50, e é por muitos considerado uma autoridade neste idioma. Presentemente, toca todas as terças-feiras no Hot Clube de Portugal em jam-sessions com jovens músicos, o que lhe confere uma visão actual do panorama do jazz em Portugal e do seu ensino.
JNPDI!: Qual foi a impressão global que reteve deste concurso?
JBV: A primeira impressão é a de que este é um país engraçado. De facto, onde apesar de tudo se pensa que o público de jazz é um público relativamente restrito e que o jazz é uma música pouco procurada e pouco apreciada começa a haver este fenómeno, que não se pode ignorar, em que não só o número de festivais que se organizam pela província é muito grande como começam a surgir estes núcleos engraçados de escolas. É um fenómeno realmente curioso e que reflecte que há mais pessoas a praticar música e que há uns carolas que em vários sítios se interessam pelo jazz e põem esta miudagem a tocar jazz.
JNPDI: E é fácil avaliar combos de jazz?
JBV: É muito difícil para um júri classificar as escolas por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar porque existem grandes diferenças entre eles; havia ali combos de gente muito jovem, com uma experiência ainda muito limitada neste campo, e outros músicos que já têm um certo traquejo, uma certa experiência e portanto há ali uma certa desigualdade. Depois há uma coisa curiosa que é o facto de eu conhecer alguns dos músicos que estavam nos combos, sobretudo nos grupos de Lisboa e do Barreiro. São músicos que conheço há algum tempo do Hot Clube e até de tocar com eles e portanto tenho uma outra perspectiva das suas capacidades para tocar jazz diferente daquela que é vê-los num espectáculo preparado e ensaiado.
JNPDI: Como avalia globalmente a prestação dos 10 combos?
JBV: Houve dois ou três momentos bastante agradáveis, nomeadamente pelo grupo do Hot Clube, que tem músicos com um certo traquejo e que já têm participado noutros momentos em actividades do jazz. Este grupo foi realmente interessante e houve ali momentos que já dão prazer ouvir a quem gosta de jazz. O grupo da Madeira também teve dois momentos engraçados, sobretudo o trompetista, que acabou por receber uma menção honrosa. Fizemos questão disso porque ele de facto tocou um ou dois temas muito bem, com um conhecimento muito grande da música de jazz, com uma excelente sonoridade e com uma capacidade de improvisar interessante. Os outros grupos de uma maneira geral eram mais fracos e alguns reflectiam no fundo esta promiscuidade entre o jazz e o rock porque muito destes músicos procuram fazer a sua carreira e ganhar dinheiro e portanto utilizam às vezes estas escolas, incluindo a do Hot, como plataforma para depois tocarem outro género de música que tem mais saída comercialmente.
JNPDI: A que se deveu a preferência pelo combo do HCP?
JBV: Primeiro, o conjunto do Hot Clube tem cinco músicos com uma qualidade já bastante assinalável. O pianista é um músico com bastantes conhecimentos e que domina bastante bem não só a técnica pianística como a de improvisação, o contrabaixista é muito seguro e sabe o que está a fazer e, nos sopros, o trompetista é um tipo muito engraçado, embora me parecesse que esteve abaixo das suas possibilidades nesta edição. Mas o que me surpreendeu foi o saxofonista, Daniel Vieira, ao qual eu algumas vezes pus algumas reservas, mas que ali esteve realmente muito bem, com uma afinação e um som excelente num instrumento que é sempre difícil de afinar. Ele afina muito bem, tem um som excelente, cheio, e naquilo que tocou esteve sempre bem. Depois este combo tem outro particular que é o baterista, que foi muito apreciado pelo júri e houve ainda a tentação de o distinguir também, mas o prémio é em si próprio um pouco afunilado na medida em que não abre possibilidade para um prémio por instrumento. Ele foi de longe o melhor baterista e é um rapaz que eu considero uma das grandes esperanças da bateria portuguesa. Tem um excelente som, um excelente tempo e uma dinâmica e atenção à música que é muito rara entre nós e, de facto, ele foi para mim um dos factores de qualidade deste quinteto.
JNPDI: Os combos da Madeira e do Barreiro não podiam ter disputado a vitória?
JBV: Bem, o combo da Madeira teve uma prestação um pouco irregular. Houve de facto dois momentos muito bons, no «Whisper Not» e no «Skylark», com solos de excelente qualidade pelo trompetista, mas o resto não foi tão bom. Em relação ao Barreiro, o combo tinha um saxofonista que é um sénior e que é professor e não sei se devia estar ali num combo de jovens. Por outro lado, tinha dois sopros, um trompete e um saxofone, que não solaram sequer e não era possível atribuir um prémio a um conjunto que tem dois sopros que nem sequer fazem um solo. São rapazes que estão no princípio e que podem até vir a ser excelentes músicos - não há aqui nenhuma ideia de os desanimar em relação à sua carreira, acho que eles devem persistir - mas não se ia premiar um combo com estas características.
JNPDI: O que achou da escolha global do repertório?
JBV: Muito díspar, no entanto com algumas surpresas interessantes. Acho que alguns dos temas foram bem escolhidos e é engraçado que houve temas que apareceram mais do que uma vez, como o «Bolivia», do Cedar Walton. De uma maneira geral acho que houve temas bem escolhidos e os grupos fugiram um bocadinho aquilo que hoje é muito mau no jazz português que são os originais. Houve alguns temas originais, mas de uma maneira geral escolheram-se temas que são do repertório do jazz internacional, o que nesta fase em que eles estão é o que deve ser procurado.
JNPDI: Sei que tem uma proposta relativamente aos originais...
JBV: Há músicos portugueses que têm algumas composições muito interessantes, como o Pedro Moreira, o Bernardo Sassetti, o Mário Laginha ou o Tomás Pimentel. O problema é que os standards do jazz antes de serem standards foram originais e para serem standards foi preciso que alguém os tocasse. Se você pegar nos temas do Clifford Brown e do Miles Davis eles não eram standards no início, eram originais. Depois toda a gente começou a tocá-los e hoje se se falar no «Up Jumped Spring», ou nos temas do Miles ou do Thelonious Monk, são standards. Por isso eu acho que uma coisa interessante era para o ano, na Festa do Jazz, sugerir que alguns dos temas tocados pelos combos e pelos séniores fossem composições destes músicos portugueses que citei, ou doutros, para que esses temas começassem a entrar no ouvido das pessoas, fossem divulgados e entrassem no repertório não só dos seus autores, mas daqueles que tocam jazz. Há alguns temas que merecem francamente isso.
JNPDI: Que conselhos dá o júri aos músicos que participaram?
JBV: Ouvir, ouvir, ouvir; praticar, praticar, praticar e sobretudo... gostar de jazz.
JNPDI: Gostou dos concertos dos séniores?
JBV: Bem, eu não assisti a todos, mas acho que as orquestras foram muito boas, embora no caso da Andreia me parecesse que joga um pouco à defesa, é uma música um bocadinho conservadora. Prefiro outras mulheres como a Maria Schneider, mas ela está também no princípio da sua carreira e tem muito mérito. Gostei muito do primeiro e do último tema, mas achei um bocadinho monótono em determinado momento aquela suite e dá-me impressão que não arrisca muito. A orquestra do Claus tocou muito bem, como era de esperar, e além disso é claro que gostei imenso da Maria João e do Laginha. Sem jazz não existia aquilo; aquilo está cheio de jazz. Ele toca muito bem, assimilou e digeriu toda a música de jazz e utiliza-a com uma mestria extraordinária. Ela tem o domínio da voz e da presença e do espectáculo e de facto vale a pena ver aquilo. Dentro do seu estilo é fantasticamente bem feito por dois músicos fabulosos e que, além disso, sabem muito bem montar um espectáculo. Do Carlos Barretto gostei e achei muito bom o Jorge Pardo, assim como o Mário Delgado e todos.
JNPDI: Que balanço final faz desta Festa do Jazz?
JBV: Acho que a ideia e a maneira como se concretizou esta festa do jazz é uma coisa notável para o nosso meio e agradabilíssima e um ponto em que se encontraram músicos - mesmo os que se afastam um pouco e não gostam de partilhar com os outros - num ambiente de camaradagem e de amizade. No conjunto acho que a Festa do Jazz foi uma manifestação musical excelente e a forma como foi concretizada foi extremamente feliz para o jazz e para todos os que gostam de jazz.
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