30 de março de 2004

Eu, Miles Davis e os sapatos pele de crocodilo

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Ora aqui vai a estória do encontro com um dos meus ídolos, Miles Davis.

Estavamos em 1991 e tinha acabado de ler/devorar/viver a sua autobiografia. Lembro-me de ir para as aulas de comunicação e marketing e de estar a ouvir os seus solos na minha mente, enquanto os professores peroravam sobre algo de que não me lembro já.

Tornei-me, então, assíduo frequentador da megastore da Valentim de Carvalho no Rossio e esgotei praticamente todo o stock de discos de Miles Davis, sobretudo dos anos 50/60.

Eis quando surge a notícia de que Miles em pessoa tocaria no Coliseu dos Recreios. Nem pensei duas vezes, dirigi-me à bilheteira e troquei 5 valiosos contos por um precioso lugar na primeira fila.

O concerto foi fenomenal, embora de jazz pouco ou nada tivesse. Mas tinha Miles e tinha-o ao seu melhor. Absorvi tudo: a música, o cenário (desenhado por ele mesmo), os seus gestos, os tiques, a forma como anunciava os músicos levantando um cartaz branco com o seu nome escrito a negro.

No fim, deixei-me ficar a absorver ainda o ambiente da sala e quando saí vi-o partir num Mercedes preto, rodeado de centenas de fans. Não disse uma palavra nem fez um aceno de mão sequer. Partiu à Miles Davis, em silêncio. O discurso tinha sido lá dentro no Coliseu. Ele, o mago do trompete, nada mais tinha a acrescentar.

Isto passou-se em Março e algo me dizia que ele não mais voltaria a Portugal. Foi então que decidi ir esperá-lo ao hotel. A inclusão do Tivoli na lista de patrocinadores do concerto fez-me suspeitar de que ele estaria por lá instalado e por isso no dia seguinte, logo pela manhã, baldei-me às aulas e plantei-me cá fora na entrada do dito hotel.

8h30, em sentido, olhos bem abertos. E esperei.

Mas, não desesperei, passados alguns instantes saía pela porta principal aquela figura de que eu sabia praticamente toda a vida pela autobiografia que acabara de ler pela enésima vez. De repente, ele já não era apenas um conjunto de letras, linhas, pensamentos e notas. Era ele mesmo, ali à minha frente em carne e osso. O mito adquiria forma.

Lembro-me que o que mais me impressionou foram uns sapatos pele de crocodilo que ele usava. Não sei porquê, mas a verdade é que nunca mais me sairam da cabeça. Eram uns sapatos rasos, pretos. Depois havia aquela farta cabeleira, provavelmente postiça.

Do que tinha lido sobre ele e do que se falava, não me atrevi a tirar do bolso um dos seus discos e 'sacar' um autógrafo. Limitei-me a vê-lo partir num simples táxi.

Mais tarde, por casualidade, soube que uma amiga minha médica tinha viajado ao seu lado no avião para a Alemanha. Ela estava com gripe e não parava de se contorcer, ao que ele lhe perguntou se ela estava incomodada por viajar ao lado de um negro? Típico do Miles. Ela respondeu que não, que sabia muito bem quem ele era e que adorava jazz e especialmente a obra dele.

Teve mais sorte do que eu, mas eu já me considero sortudo por ter tido oportunidade de ter estado ali a dois passos do músico que mais admirei e admiro.

Já agora, passem pelo site oficial do Miles e vejam a espantosa fotografia de entrada (um conselho, não entrem logo. Aguardem uns segundos e vejam a transformação cromática).

É assim que me lembro dele e foi assim que o vi pela última vez.

Morreu poucos meses depois, em Setembro.


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