19 de maio de 2012

BERNARDO SASSETTI: UM TOQUE DE ALMA NUM PIANO CONTIDO
Por João Moreira dos Santos*

berardosassetti-8399.jpg Fonte: Revista Blitz

Um sorriso rasgado, uma gargalhada sonante, dois braços sempre estendidos para acolher quem com ele convivia e duas mãos que traduziam para o piano a rica musicalidade e generosidade da sua alma. Assim era Bernardo Sassetti, cuja partida deixa a cultura portuguesa mais pobre e o mundo mais cinzento porque desprovido da sua colorida luz, feita de sons cristalinos e de puro génio e inspiração.

Difícil desafio este de compor um texto sobre esse ser de excepção que conheci quando em Maio de 1989 ambos participámos num workshop realizado por John Abercrombie no Palácio Fronteira, em Lisboa; ele com 18 anos, eu com 17. Apesar de jovem, tudo nele era já especial: a alegria de viver, flirtando com os mais pequenos acasos da vida, o gosto de comunicar com as pessoas – todas as pessoas –, a forma como articulava as palavras, buscando-lhes a semântica, e, sobretudo, o dom natural para a música e para o piano, que tocava com contagiante prazer.

No início dos anos 90 voltámos a encontrar-nos nos cursos Projazz, leccionados por alguns dos mais conceituados músicos de jazz norte-americanos. Ficou-me sempre na memória aquela tarde de um certo dia do verão de 1991 em que o pianista Hal Galper se deliciou a ouvi-lo tocar numa das aulas realizadas nos Salesianos do Estoril e no final exclamou alto e bom som: “This kid is dynamite!”

Não obstante vários breves diálogos casuais ao longo dos anos, reencontrámo-nos em Março de 2010 no estúdio Namouche, onde Sassetti ultimava, maravilhado, um filme para a apresentação do seu disco Motion no Centro Cultural de Belém. “Silêncio…”, pediu-me, brincando, como quem protege a intimidade de uma acarinhada obra por anunciar.

Finalmente, em Outubro passado cruzámo-nos de novo, agora no estúdio onde se deslocou para gravar a dois pianos com Barros Veloso, médico e músico amador que nos anos 80 lhe dera “a alternativa” numa de muitas jam-sessions realizadas no Hot Club de Portugal. Desta sessão resultou um inspirado “Olhar”, tema por si composto e integrado no CD Doctetos, que tive a honra de produzir. Foi talvez a sua última gravação e também a última vez que o vi e ouvi, mas fi-lo sentado no estúdio ao lado do seu piano, absorvendo a forma como sentia primeiro a música no espírito e procurava depois encontrar no piano, com os dedos tacteando o teclado, a sua mais fiel tradução. Assim era o seu processo criativo.

DSC_0077-1.jpg
João Moreira dos Santos, Bernardo Sassetti e Barros Veloso (Out. 2011)

Da clássica para o jazz

Nascido em Lisboa em 1970, três dias depois do Solstício de Verão e sob o familiar, sensível e lunar signo de Caranguejo, Sassetti, o oitavo irmão de uma família ligada há décadas à edição musical e à música, era bisneto de Sidónio Pais, sobrinho-neto de Pedro de Freitas Branco e sobrinho de João de Freitas Branco.

Aos cinco anos já dedilhava na guitarra algumas canções dos Beatles, depois apaixonou-se platonicamente pelo baixo eléctrico e aos nove anos começou os seus estudos com a professora Maria Fernanda Costa, expandidos com António Menéres Barbosa e o ingresso na Academia dos Amadores de Música.

A sua aversão ao solfejo e ao rigor académico levava-o a improvisar sobre o conteúdo das lições pelo que aos 12 anos optou pelo estudo do jazz em detrimento da música clássica. “Era uma espécie de alimento para a alma (…), era uma necessidade vital”, conforme revelou em entrevista a Manuel Luís Goucha, exibida na TVI24 em Dezembro de 2010.

A paixão pelo “som da surpresa” levou-o a sorver sofregamente o jazz durante a adolescência. Fê-lo através da audição de discos dos grandes mestres do piano – que tocava no gira-discos com as rotações a metade da velocidade para melhor poder acompanhar os rápidos solos de Bud Powell –, dos muitos dias passados a copiar discos em casa de Duarte Mendonça (produtor do Cascais Jazz e Estoril Jazz) e nas longas jam-sessions realizadas no Hot Club com os primos Moreira e outros músicos.

Em 1987, com 17 anos, deu início à sua carreira profissional, tendo integrado o quarteto de Carlos Martins e o Moreiras Jazztet. Em Portugal e quando da sua estada em Barcelona, nos anos 90, onde formou um trio com Zé Eduardo, tocou com verdadeiras lendas do jazz, nomeadamente Al Grey, Art Farmer – com quem dizia ter aprendido muito de harmonia e não só –, Freddie Hubbard, Benny Golson e Kenny Wheeler.



Cumprido o serviço militar obrigatório (que o pôs a tocar caixa na banda da região militar de Lisboa), em 1992 partiu para Inglaterra à procura de um jazz mais contemporâneo. Aí tocou com o trompetista Guy Barker, tendo corrido mundo com o seu International Quintet e gravado, entre 1996 e 2002, três discos, um dos quais, Into the Blue, foi nomeado para os Mercury Awards.

A participação num destes discos, em que cantou também Sting, valeu-lhe, a ele que sempre nutrira uma enorme paixão pelo cinema, o convite para tocar no filme “O talentoso Mr. Ripley”, de Anthony Minghella, onde acompanhou a voz do actor Matt Damon. Neste mesmo ano, compôs uma suite orquestral para o filme mudo “Maria do Mar”, de Leitão de Barros.

Espelhos de identidade

Os primeiros discos como líder surgiram ainda nos anos 90: Salssetti, em 1994, e Mundos, em 1996, ambos inspirados pelas extrovertidas músicas do muito mundo que percorreu em digressão e pelas suas muitas influências e preferências.



Após uma ausência discográfica de sete anos, Nocturno, gravado em Belgais, usando um dos pianos de Maria João Pires, revelou em 2002 o Bernardo Sassetti intimista, mestre dos silêncios e das notas que convidam à meditação e ao encontro interior. O sucesso foi imediato, tanto como os muitos ouvidos que logo se apressaram a descobri-lo e redescobri-lo, com Carlos Barretto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria), fazendo deste registo o disco instrumental de jazz mais vendido em Portugal.

Em 2003, surgiu ao lado de Mário Laginha, a dois pianos, com as mãos de ambos estampadas numa capa icónica e unidas numa comunhão musical que voltou a dar-se em Grândolas, editado em 2004. Neste mesmo ano, Indigo, o seu primeiro disco a solo, evidenciou um ambiente musical próximo da poesia e lírica de um Bill Evans (pianista que considerava responsável pela sua carreira no jazz), pautando-se por um respiração lenta e sentida, nomeadamente na arrepiante interpretação de «My Funny Valentine». Este disco foi, aliás, a banda sonora perfeita para ilustrar o desgaste que então sentia com as digressões, e mesmo com o jazz, e a sua consequente necessidade de abrandamento e interiorização. Foi esse sentimento que o levou a refugiar-se na fotografia, identificando mesmo a máquina fotográfica como prolongamento do seu corpo.



Um ano depois, Ascent revelou a sua dupla faceta de músico de jazz e compositor de bandas sonoras, combinando temas tocados com dois trios distintos, um jazzístico, formado por Barretto e Frazão, e outro erudito, composto por Ajda Zupancic (violoncelo) e Jean-François Lezé (vibrafone). Neste mesmo ano de 2005, editou Alice, o primeiro de três discos com algumas das várias bandas sonoras que compôs para cinema, incluindo Second Life (2009) e Um amor de perdição (2009).

Sassetti era cada vez mais um contador de histórias, um realizador cinematográfico por realizar que no entretanto ia fixando no piano e nas pautas as primeiras curtas metragens. Exemplo disso foi o disco Unreal sidewalk Cartoon (2006), cujo booklet, com fotografias e montagens fotográficas suas, foi o melhor substituto para uma película por revelar. É, pois, natural que em face da sua multidisciplinaridade e talentos lhe tenha surgido em 2007 uma inquietante Dúvida, título do disco com a música original que compôs para o espectáculo teatral homónimo. Escreveu então neste CD: “Sobre a música, tenho muitas dúvidas”. Pelo contrário, o público tinha certeza absoluta na sua excepcionalidade como pianista e compositor, rendendo-se à versatilidade e empatia renovadas no disco 3 Pianos, gravado ao vivo no CCB, em 2007, com Mário Laginha e Pedro Burmester.


O seu último CD como líder, Motion, foi editado em 2010, reunindo-o aos seus “velhos” e estimados companheiros musicais, cuja importância evocou num texto da sua autoria: “Muito do que hoje sei devo-o a este trio, ao Carlos Barretto – irreverente como poucos, sempre em constante diálogo com os outros, "astrológico" – e ao Alexandre Frazão – simultaneamente pela força e subtileza que se ouve nas sonoridades da sua bateria e pela energia que dá à dinâmica do trio”.

O prazer de partilhar

Bernardo Sassetti fazia parte daquela categoria especial de pessoas que gostam e precisam de pessoas; aquelas pessoas capazes de, como dizia, aprenderem a “enfiar o ego numa caixa” e simplesmente dar-se, evitando o lado fechado e egocêntrico que reconhecia nos artistas ainda em processo de afirmação: “Estar em palco é sentir a energia da música e ao mesmo tempo sentir também a energia das pessoas” (Goucha, 2010).

Qualquer meio, desde a fotografia ao cinema, servia para cumprir a sua necessidade de partilhar e de se partilhar. E talvez tenha sido essa necessidade de vivências, de se dar, que o levou a abraçar músicas mais populares como a pop e o fado, tendo colaborado com Rui Veloso, Carlos do Carmo, Camané, Luís Represas, Rui Veloso, DaWeasel e tantos outros.



Mas o mais importante na vida e obra de Sassetti, que afirmou em entrevista a Maria João Seixas ser “um terrestre (…) que caminha de uma forma muito aérea, muito suspensa, à procura de qualquer coisa, sobretudo na música, que ainda não sabe muito bem o que é”, foi ter intuído ao piano a sua essência, partilhando esse enriquecedor processo connosco em jeito de um convite que precisa de ser honrado por todas as razões…

Esse convite é para que aprendamos a fazer silêncio num mundo frenético e saibamos ouvir-nos e sentir o coração e não apenas a mente e os múltiplos estímulos que nos rodeiam.

A questão é saber o que faremos com o legado e o exemplo da sua vida e obra.

* Publicado originalmente no «Jornal de Letras» de 16 de Maio de 2012.


Site Meter Powered by Blogger