27 de junho de 2010

A América de Bessie Smith e António Ferro

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Era uma vez um grande país nos anos 20 que clamava pela Liberdade, mas vivia na base da segregação racial: brancos para um lado, pretos para outro (pior, claro).

Era uma vez uma cantora de Blues, porventura a maior de todas.

Era uma vez um jornalista português que antes de ser propagandista do Estado Novo, era um homem das artes do seu tempo.

Era uma vez uma história que juntou os três...
Eram uma vez os Estados Unidos da América, Bessie Smith e António Ferro.

Em 1927, António Ferro (1895-1956), jornalista e homem de letras (editor da célebre revista Orpheu) e autor do livro A Idade do Jazz Band (1923), rumou aos Estados Unidos. Daí, escreveu várias crónicas para o Diário de Notícias, posteriormente publicadas nos livros Novo Mundo, Mundo Novo (1930) e Hollywood, Capital das Imagens (1931).

Numa dessas crónicas, António Ferro parece cruzar-se com essa grande voz que foi Bessie Smith, cognominada na época como Imperatriz dos Blues.

Os EUA eram então um país muito diferente. A segregação racial era lei (impondo espaços diferenciados para os brancos e para os negros) e os linchamentos eram uma prática do Ku Klux Klan, com os seus cerca de 4 milhões de membros equivocamente empenhados na afirmação da violência ao serviço da instauração da "supremacia branca". A Lei Seca ainda vigorava e além disso, tornavam-se visíveis os problemas económicos que mais tarde levaram ao crash de 1929.

Foi neste contexto que emergiu Bessie Smith, uma aprendiz de Ma Rainey. O ano era 1923 e a sua voz chegava pela primeira vez a casa dos norte-americanos através dos pesados discos de 78rpm que os gramofones e grafonolas liam nas suas duas faces de cerca de 3 minutos. Bessie tinha acabado também de chegar a Nova Iorque, proveniente de Atalntic City. Foi aqui que a Columbia a contratou e gravou, tornando-a famosa logo no seu segundo disco, o qual incluía a canção "Down harted Blues". É que naquela época vender 750 000 discos em um mês, apesar de ainda não haver pirataria, não era propriamente comum...



Os brancos que a quisesssem ver e apreciar também os músicos que a acompanhavam - tais como Louis Armstrong, Joe Smith, James P. Johnson e Charlie Green - tinham porém de se deslocar ao Harlem (o bairro onde se concentravam os negros em NYC) ou vê-la nos "Buffet flats", apartamentos que os negros alugavam para festas, contornando assim a segregação a que estavam sujeitos nos hotéis. No Verão, podiam também vê-la nas tournées que realizava pelos EUA (de 1925 a 1927), actuando numa tenda concebida para o efeito, na qual apresentava o espectáculo Harlem Frolics .

Foi precisamente no Harlem que Ferro a terá visto em 1927. A experiência encontra-se numa das crónicas em que narrou uma passagem sua por um clube em que cantava uma poderosa voz dos Blues, sem dúvida uma descrição que se cola com Bessie Smith. Neste mesmo ano, a cantora deu a sua voz a uma canção sobre as grandes inundações que tinham afectado Nova Orleães, as únicas comparáveis às provocadas há anos pelo Katrina.



Bessie Smith cantava também êxitos como "Alexander's Ragtime Band" e "Send me to the electric chair". E que regalo auditivo terá sido, certamente, para o privilegiado António Ferro.





Dois anos depois deste suposto encontro, em 1929, Bessie Smith participou no filme St. Louis Blues, deixando-nos imagens históricas e uma versão tocante desta canção.



Infelizmente, era também uma vez um país em que Bessie Smith, cantora negra formidável, morreu porque a assistência médica dos seus compatriotas brancos não se apressou a socorrê-la depois do acidente de automóvel que sofreu em 26 de Setembro de 1937...

António Ferro, por seu lado, voltou a Portugal e nos anos 30 passou a dirigir o SNP (Secretariado Nacional de Propaganda), colando o seu destino ao do Estado Novo, um dos muitos regimes nacionalistas que então emergiam numa Europa cada vez menos livre e plural...

Fiquemos, pois, em memória de Bessie Smith, com algumas das suas extraordinárias interpretações dos Blues. O seu legado é um património da Humanidade e uma lembrança viva, e triste, dos seus equívocos e da sua intolerância racial.








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