8 de novembro de 2008

Levantados do chão...

Baptista Bastos, na sua coluna "O progresso e a naftalina", publicada no Jornal de Negócios, escreveu recentemente o seguinte texto a propósito da eleição de Barack Obama.

Em 1927, Al Jolson pintou a cara de negro para ser "O cantor de Jazz", o primeiro filme sonoro norte-americano. O enredo era inverosímil, mas nada se comparava ao absurdo de colocar um branco a fazer de preto. Preto, nos Estados Unidos, estava impedido praticamente de tudo, menos de ser espancado, humilhado, vexado, desprezado.

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Quarenta anos mais tarde, Stanley Kramer realizou "Adivinha quem vem jantar?", filme no qual o negríssimo Sidney Poitier beijava uma alvíssima Katharine Houghton. Este terrível requisitório contra o preconceito racial foi perseguido, proibido de ser exibido em numerosos Estados americanos, alvo de artigos sulfúricos assinados pelos mais cotados comentadores de Direita, um dos quais, Clark Silverston, invocava a purificação das labaredas para a película, o seu realizador e todos os seus intérpretes, entre os quais Spencer Tracy e Katherine Hepburn.

Hollywood vivia, ainda, sob o que restava do Código Hayes, um documento regulador do que devia e não devia ser filmado. Georges Sadoul, o grande historiador e ensaísta cinematográfico francês, conta, em "Le Cinéma", a incongruência das medidas restritivas contidas no Código. Claro que a inclusão de negros era severamente vigiada, e apenas permitida em circunstâncias muito especiais: pertenceriam, sempre, às classes mais inferiores. A infâmia do documento representa, afinal, a imagem da sociedade, cuja hipocrisia, provincianismo e conservadorismo religioso constituíam fortes elementos. Eis um dos itens: "O nu completo não é admitido, em hipótese alguma. A proibição é, também, para o nu de perfil e toda a visão licenciosa de personagens do filme. É igualmente proibido mostrar órgãos genitais de crianças, inclusive de recém-nascidos. Órgãos genitais masculinos não devem sobressair. Caso um tema histórico exija uma calça justa, a forma característica dos órgãos genitais deve ser suprimida, na medida do possível. Os órgãos genitais da mulher não devem aparecer, nem como sombra, nem como sulco. Toda a alusão ao sistema capilar, inclusive as axilas, está proibida."

O puritanismo desabusado desta América moldou-lhe o perfil e estruturou-lhe a alma. Há trinta anos, um negro tinha de se sentar nos fundos dos autocarros. Um miúdo, em Alabama, foi assassinado a tiro, porque assobiara à passagem de uma rapariga branca.

Um grande jornalista português, J.M. Boavida-Portugal, natural de Porto de Mós, na altura subchefe da redacção de "O Século", foi aos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado. Era um homem extremamente afável, de tez escura, e grande apreciador da grande nação e da sua cultura. Não o deixaram entrar num hotel de primeira, e as autoridades tiveram de encontrar uma solução intermédia para o seu convidado, instalando-o numa espécie de pensão mexicana.

Todos nós sabemos de casos aberrantes, que mancham de opróbrio o imenso país. O nascimento do macartismo não foi o menor, nem o último dos males. Mas a América do Norte dispõe de energias, igualmente poderosas, que colmatam situações de escândalo. E o cinema tem contribuído, com eficácia persistente, para que os direitos e deveres sejam iguais entre as raças.

Eis porque a vitória de Barak Obama, saudada em todo o mundo pelas forças do progresso e do futuro, é muito mais do que um episódio singular. Ela representa o embate entre o antigo e o moderno, entre o passado e o devir. E, também, o ânimo de um homem que parece ter tudo contra si e, de repente, incarna a História, desafia-a e às suas influências ocultas, arrasta consigo uma avassaladora onda de juventude e fornece ao mundo um novo perfil de sonho.


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