10 de agosto de 2004

O que diz Bernardo Moreira, Presidente do HOT?

Ao completar doze anos na presidência do Hot Clube de Portugal (igualando o recorde de Rui Martins), Bernardo Moreira, polémico e frontal como sempre, passa em revista a sua gestão e fala-nos dos próximos desafios, nomeadamente a eventual transferência da «catedral» da Praça da Alegria para o Parque Mayer. Oportunidade ainda para saber como vai o jazz na terra do fado e como se deu com a política do Estado Novo.

Jazz No País do Improviso: O que é hoje o Hot Clube?

Bernardo Moreira: É um clube de sócios, continua a ser, não tem uma óptica comercial, continua a não ter, não pode é perder dinheiro, mas não tem como objectivo ganhar dinheiro, e não pretende fazer concorrência ao mercado que, felizmente, começa a existir, de festivais, de concertos e de produções. Acho que o clube enquanto estrutura criada pelo Villas-Boas mantém-se no essencial o que era. Tem tido, é verdade, inteligência ou habilidade suficientes para se adaptar praticamente instantaneamente à sociedade em que está inserido e, portanto, nesse aspecto o Hot mudou exactamente o que mudou a sociedade em Portugal. É um clube prestigiado em todos os sectores da actividade cultural nacional, e não só, e não foi surpresa nenhuma que o último Governo de Cavaco Silva lhe atribuísse a declaração de utilidade pública, que aliás já tinha sido pedida pelo Rui Martins no final dos anos 80.

JNPDI: Qual é hoje o prestígio internacional do Hot?

BM: Ao nível dos músicos e das estruturas de ensino é muito mais conhecido do que em qualquer terra portuguesa, porque nós privilegiámos muito o contacto com o estrangeiro Foi uma das prioridades na minha gestão tirar o Hot do beco: prefiro ser o pior do mundo do que o melhor da Praça da Alegria, porque se eu tiver a consciência de que sou o pior do mundo posso melhorar, se estiver convencido de que sou o melhor da Praça da Alegria, trabalhar para quê? Uma das vertentes da minha presidência foi deixar de olhar para o umbigo e compararmo-nos com os melhores. Nisso temos uma posição muitíssimo ambiciosa.

JNPDI: Que balanço faz destes 10 mandatos à frente do Hot? Quais foram as principais prioridades na gestão?

BM: O que a minha presidência fez foi no fundo adaptar o funcionamento do Clube à sociedade em que está inserido. Não são de somenos importância as alterações legislativas que têm acontecido no País. Primeiro, o País todo foi obrigado a ter registo nas finanças, coisa que estas sociedades não tinham. Estavam aprovadas por aprovação dos estatutos pelo Governo Civil e tinham uma contabilidade completamente interna. Ora, a legislação tem vindo a mudar e nós, quer gostássemos ou não, tivemos que nos modernizar nesse aspecto. Entretanto, outro problema que surgiu na passagem do Rui Martins para a minha presidência foi que já não era possível funcionar à mão porque o computador já estava completamente introduzido nos hábitos das pessoas. A gestão anterior já tinha um princípio de contabilidade por computador, mas era uma coisa muito embrionária.

JNPDI: Que alterações é que isso ditou?

BM: Uma das coisas que tive de fazer foi o ficheiro de todos os sócios desde 1948 porque com a política que todos os clubes seguiram de renumerar os sócios nós não conseguíamos informatizar o clube. O número 327 foi atribuído a 50 sócios até hoje... Demorou-me dez anos a fazê-lo, devo dizer, e está praticamente agora a chegar ao fim. Ainda tenho algumas lacunas porque infelizmente nas vigências anteriores, em que o Hot não tinha sede física e as pastas andavam de casa de presidente para casa de secretário, perderam-se registos, perderam-se arquivos, perdeu-se um volume de actas de assembleias gerais. E também nunca houve nas direcções anteriores nenhum conceito de que estávamos a fazer história, é um conceito que eu introduzi no Hot, preservando, guardando e arquivando tudo: cartazes de concertos, papéis, etc., fica tudo arquivado. Hoje não vale nada, daqui a 50 ou 100 anos são umas peças engraçadas. Estou a contribuir para algo [o Hot Clube] que vai ficar na história, quer as pessoas gostem de jazz, quer não. Isso é ponto assente.

JNPDI: Que outras prioridades foram eleitas?

BM: O Hot está isento de alguns impostos mas tem de cumprir a legislação fiscal e essa foi para mim uma prioridade rigorosamente absoluta. Outra prioridade tem sido procurar qual a forma mais directa de promover e divulgar o jazz e aqui há uma visão que eu queria que resultasse clara. Pode tentar fazer-se isso directa ou indirectamente. O que é fazer directamente? É o Hot arvorar-se como produtor, como promotor. Há outra visão, low profile, que é influenciar indirectamente. É mais ou menos essa que nós temos privilegiado, no sentido de que não me interessa protagonismo a mim, interessa-me protagonismo para o clube. Não me interessa nada andar nos jornais, interessa-me é que o jazz não vá caindo.

JNPDI: Como é que isso tem sido feito?

BM: Através de várias formas: criar certas rotinas de procedimento nos concertos que nós fazemos, melhorar brutalmente a prestação que fazemos no mercado - a qualidade dos nossos grupos hoje não tem nada a ver com a de há dez anos - e melhorar a qualidade do que fazemos em todos os aspectos.

JNPDI: E as prioridades culturais?

BM: No ponto de vista artístico, ou na parte propriamente da música, JNPDIudar à explosão monumental que foi a escola e apoiar a explosão monumental que foi a melhoria das condições da Praça da Alegria em termos de programação. Passou a ser corrente termos craques mundiais, coisa que no meu tempo havia por circunstâncias que não eram directamente atribuíveis ao Hot; eram os aviões que não faziam Nova Iorque - Paris e portanto os músicos chegavam a Lisboa, tinham uma noite e iam ao Hot. Demos um salto qualitativo imenso, o que não quer dizer que nas anteriores direcções não tivesse havido pontualmente pessoas de grande qualidade, a média da programação é que é outra, subimos a bitola. Outra das prioridades da minha gestão foi ter recuperado a figura das jam-sessions no Hot - é fundamental que existam, é onde os jovens aprender a tocar - e inventado uma coisa que não havia em Portugal, uma Big Band.

JNPDI: Tem tido sucesso? Quantos concertos dá por ano?

BM: Enorme. Em média nos últimos sete ou oito anos tocámos 15 a 22 vezes por ano.

JNPDI: O que é que a diferencia da de Matosinhos?

BM: São projectos completamente diferentes. A OJM é uma orquestra de autor e a do Hot é assumidamente de repertório. A minha ideia de fazer a Big Band foi pedagógica, trazer aos músicos de grande qualidade em Portugal, que já havia, o rigor da música escrita.

JNPDI: Onde vai estar o Hot daqui a dez anos?

BM: Há-de estar onde os sócios quiserem. É uma pergunta que seria tão pertinente fazer hoje como em 1950.

JNPDI: Quantos sócios tem o clube hoje em dia?

BM: Tem os mesmos que tinha em 1950, grosseiramente. Há uma coisa que é verdade: o Hot tem que distinguir entre os sócios e os que dizem que são sócios. Pelos estatutos, sócios são os que tendo sido admitidos pagam as suas quotas.

JNPDI: Quantos são?

BM: 300

JNPDI: Com uma estrutura societária aparentemente frágil, assente num modelo associativo, o Hot, particularmente a escola, poderá vir no futuro a ser uma marca franchisada explorada por privados?

BM: Comigo não o fará. Não sei o que é que quer dizer estrutura frágil... É uma estrutura que resiste há 50 anos? Não é uma estrutura tão frágil quanto isso. Até pode haver uma solução de dar uma certa autonomia à escola, à partida não digo que não. Não vejo qualquer problema nisso desde que essa seja a vontade das pessoas.

JNPDI: Mesmo se for uma solução para no futuro manter o nome do clube vivo?

BM: Quando o Hot estiver morto não sei se vale a pena manter o nome vivo. Não estou a dizer que não vale, estou a dizer que não sei se vale a pena manter vivo artificialmente um organismo que morreu. Porque o Hot hoje não morreu, está activo em todas as suas frentes e cheio de genica. Agora, daqui a 10 anos... bem o clubismo passou de moda, o Benfica já não é o Benfica que nós conhecemos nos anos 50. O que acho é que quando o Hot estiver morto não vale a pena mantê-lo artificialmente. Coisa que eu acho que não está, assim como acho que o jazz também não está. Há muita gente a dizer que o jazz morreu e até há quem saiba o dia exacto... [risos].

JNPDI: O que se passa em torno do edifício sede do Hot, na Praça da Alegria, vai ser demolido por via do Parque Mayer?

BM: Não sei se irá ser demolido, não tenho nenhuma informação oficial que me diga. Isso. Duas entidades tinham capacidade de dizer ao Hot que o edifício n.º 39 da Praça da Alegria vai ser demolido: o primeiro deles é o proprietário ? uma empresa chamada Braga Parques ? o segundo é a Câmara. Não tenho nenhuma indicação nem dum nem doutro que o prédio é para demolir, mas é evidente que admito como uma possibilidade muito forte que isso venha a acontecer. Realmente, quando foi decidido pelo Dr. Santana Lopes accionar o novo projecto do arquitecto Frank Gehry para o Parque Mayer pôs-se a hipótese de ficar lá instalado o Hot Clube. Primeiro, o Hot Clube enquanto clube e depois o Hot Clube enquanto clube mais escola. Temos vindo a desenvolver contactos com a Câmara no sentido de concretizar isso. mas dizer que está garantido, que está concretizado, que está tudo discutido, não é verdade.

JNPDI: A Câmara já anunciou aliás que haverá no novo Parque Mayer um clube de jazz...

BM: A Câmara já anunciou que é o Hot Clube.

JNPDI: Como tem sido a relação com os vários presidentes da CML?

BM: Não me queixo de nenhum, antes pelo contrário. Qualquer um dos três foi extremamente correcto nos contactos que tivemos, defendendo o clube como uma instituição cultural da cidade de Lisboa, que tem de ser intocável. Todos os três afirmaram isso: ninguém toca no Hot.

JNPDI: Qual é o argumento que o Hot pode dar à Câmara para justificar a importância de um clube de jazz na cidade?

BM: É um equipamento cultural para o qual a Câmara não tem alternativa, é um clube com enorme prestígio, com cinquenta e tal anos de tradição, que ganhou o seu espaço na cidade de Lisboa, trabalhando numa luta dura que o Villas-Boas, acolitado por nós todos, desenvolveu durante muito tempo. Portanto, o argumento fundamental que nós pomos nas conversas com a CML é que o Hot existe, é credível, é uma estrutura prestigiada, está aqui.

JNPDI: É possível recriar o ambiente do Hot numa nova sede no Parque Mayer?

BM: Estou convencido de que será impossível. Nós temos discutido com os arquitectos que gostaríamos que o ambiente a recriar fosse o mais próximo possível do actual, aquele calor que as jam-sessions do Hot têm...

JNPDI: Numa nova sede o Hot poderá adoptar o modelo dos clubes de Nova Iorque e passar a servir refeições?

BM: Não digo que não, mas até hoje não tivemos possibilidade de o fazer. Eu gostaria de já o ter feito na Praça da Alegria, mas com 48 metros quadrados...

JNPDI: É viável trazer o Hot para o edifício da Escola, na Standard Eléctrica?

BM: Para aqui não é possível porque não há espaço.

JNPDI: Porque cessou a colaboração do Hot com o Jazz em Agosto?

BM: Tem de perguntar à Gulbenkian. Ainda estou à espera de uma carta que me diga que já não contam connosco.

JNPDI: E ainda há jazz em Agosto?

BM: Na minha opinião há quase sempre só Agosto. De vez em quando há jazz.

JNPDI: Concorda que hoje o Hot já não define tendências no jazz em Portugal, mas sim os festivais?

BM: Estou totalmente em desacordo com isso. Reduzir o jazz em Portugal aos festivais é um erro. Eu tenho uma visão diferente: os festivais não são o jazz em Portugal; o jazz em Portugal é o Hot, é o que se faz ali.

JNPDI: Mas o jazz mediático está nos festivais?

BM: O que eu quero saber é o que ficou depois dos festivais... zero. Há a necessidade camarária de fazer um relatório no fim do ano a dizer que investiram tanto em e que um tanto foi no jazz, que é politicamente correcto. Portanto, manda-se vir do estrangeiro um conjunto de músicos, gasta-se uma pipa de massa a fazer uma série de concertos que, vou admitir, todos excelentes, que me dão muito gozo a mim pessoalmente, mas o que é que ficou? Nada. Eu contesto essa visão de medir o jazz pelos festivais. O jazz é a Praça da Alegria, é o que se passa de rotina. Estou a ser um pouco exagerado porque de há quatro ou cinco anos para cá há o B Flat, no Porto.

JNPDI: Então qual devia ser a política das autarquias para desenvolver o jazz?

BM: O jazz num país é feito pelos músicos desse país, não é pelos que vêm de fora fazer festivais. E se me perguntarem se o jazz em Portugal está morto, eu digo que está muito melhor do que sempre foi porque há hoje uma colecção de músicos de jazz de enorme categoria, de enorme qualidade, extraordinariamente bons, mesmo em conceitos internacionais.

JNPDI: O modelo da Câmara de Matosinhos, que criou uma orquestra de jazz, é o mais adequado?

BM: É e não só a orquestra... a Câmara de Matosinhos patrocinava um programa de jazz na escola, com uma seriedade que outros não têm, que era pôr grupos de músicos nas escolas a mostrar como é, a exemplificar, a seduzir para o jazz. O defeito do músico português é não ter onde tocar e o que eu gostava era que o músico de jazz pudesse, como em qualquer país, tocar todas as noites. Eu gostaria que as Câmaras financiassem pequenos Hot Clube locais porque o contacto entre músicos é que ensina.

JNPDI: O Hot está disponível para esse modelo?

BM: Completamente. Aliás, nós estivemos a discutir seriamente abrir o Hot em Coimbra com um projecto deste género. Isso é que era promover o jazz em Portugal e iam ver o salto que o jazz dava; não só os músicos bons subiam de nível, como nas localidades começavam a aparecer músicos.

JNPDI: Qual foi o momento musical mais intenso que viveu no Hot?

BM: É extremamente difícil, há bocados que me deram gozos perfeitamente inauditos e completamente distintos. O Benny Golson, o Marcus Roberts a tocar piano solo, o velho Max Roach a tocar num grupo de Dixieland... são momentos inesquecíveis. O Mark Turner foi incrível.

JNPDI: E indo mais longe na memória, até aos anos 50/60?

BM: O Dexter Gordon, o Poindexter, que era um Parkeriano importante, o Herb Geller, o Red Rodney, os músicos todos do Count Basie, em 1956. A Sarah Vaughan esteve no Hot toda a noite danada para cantar mas o empresário não deixava... Depois, noutra fase, o Raulzinho, aquele trombonista brasileiro do sexteto do Sérgio Mendes, fez lá duas ou três noites do arco da velha e o Sivuca, aquele acordeonista albino, que também teve lá noites de partir a louça toda.

JNPDI: Falemos da Escola do Hot, este é um dos projectos mais importantes dos seus mandatos?

BM: É o mais importante neste momento em termos de estabilidade do Clube, que não podia ter o movimento que tem hoje sem a estabilização que a escola introduziu.

JNPDI: Quantos alunos tem actualmente?

BM: Deve andar à volta dos 200.

JNPDI: E professores?

BM: Uns trinta.

JNPDI: Qual é o modelo pedagógico da escola?

BM: É um modelo muito inspirado na New School, de Nova Iorque, com a qual temos relações de algum privilégio.

JNPDI: Como é que surgiu esta ligação?

BM: Esta ligação, assim como a que temos com várias outras escolas, como a Berklee College of Music, resulta dos meetings anuais da IASJ - International Association of Schools of Jazz, associação que funciona sob a orientação do David Liebman e da qual o Hot é um dos dezasseis membros fundadores.

JNPDI: Que conteúdos se privilegiam na Escola?

BM: Privilegiamos duas coisas. Uma cadeira fundamental é o treino auditivo, o jazz toca-se de ouvido, não há nada a fazer. Outra é tocar, o aluno tem que tocar assim que é capaz de juntar duas notas, tem de tocar em combos e é enquanto toca que vai procurando aprender.

JNPDI: E que estilos se ensinam?

BM: A linha condutora está no mainstream, na estrutura harmónica dos standards. Depois temos uma quantidade de cadeiras opcionais que são combos temáticos: Miles Davis, Pat Metheny, John Coltrane, Art Blakey, etc.

JNPDI: Quem são os mais recentes filhos pródigos da Escola?

BM: O Nuno Ferreira, o André Fernandes, o Nelson Cascais, o Bruno Pedroso, o Rodrigo Gonçalves, foram todos alunos e hoje são cá professores. E também os que estão nos EUA e que não voltaram, como o Afonso Pais, o guitarrista.

JNPDI: Outro assunto incontornável é o espólio Villas-Boas, que está à guarda do Hot. Em que consiste exactamente?

BM: São documentos, cartas, cerca de 3000 discos de vynil, várias fotografias, colecções de revistas americanas (Melody Maker e Down Beat), cassetes, vídeos, filmes...

JNPDI: Quando vai estar disponível ao público?

BM: No máximo em dois anos estará classificado.

JNPDI: O Hot tem interesse no espólio de outros sócios ilustres?

BM: Tem. Eu queria transformar o espólio do Villas-Boas num núcleo museológico.

JNPDI: Um futuro museu do jazz?

BM: Eu quero ter um museu do jazz. Não sei se temos capacidade para o fazer, mas quero fazê-lo. Estou a aproveitar o espólio do Villas-Boas para constituir o núcleo do futuro museu que pode ser uma biblioteca museu. Não há muitas peças porque o Villas não tinha muita coisa.

JNPDI: E curiosidades dos músicos?

BM: O Jimmy Davis [autor de ?Loverman?] quando esteve em Portugal compôs uma música chamada ?Dear Portugal?. É um original mas ainda não sei a que é que soa porque ainda não consegui pôr um pianista a tocá-lo. É uma peça engraçada para o museu.

JNPDI: Por falar em história, o jazz teve ou não em Portugal a oposição do Estado Novo?

BM: Eu não vejo que o anterior regime tenha hostilizado tanto o jazz como é vulgar dizer. Não morria de amores, é verdade. O conteúdo político do jazz na altura não existia, ou as pessoas não tinham consciência dele. Era uma música desprezada pelos seres pensantes educados, era uma música considerada de subdesenvolvidos e selvagens, mas que não preocupava mais as pessoas do que isso.

JNPDI: Mas a PIDE fechou o CUJ...

BM: O CUJ deu sistematicamente na sede uma conotação política, enquanto o Hot tinha nos seus estatutos que não tinha posições políticas e religiosas, era só divulgação da música. O CUJ desde o princípio que tinha posições políticas assumidas. Se alguém entrou uma vez na sede do CUJ verificou que a decoração das paredes eram frases revolucionárias do Mao-Tse-Tung, etc.. Portanto, que a PIDE tenha fechado o CUJ, que eu não sei se é verdade, é o que dizem, pode ter sido em resultado não da música de jazz, mas da propaganda Marxista que, com toda a legitimidade, o CUJ quereria fazer.

JNPDI: O jazz está na moda?

BM: Eu poderia dizer que o jazz nunca esteve na moda, o jazz foi sempre uma música de minorias. Se não fosse politicamente incorrecto dizer que o jazz foi sempre uma música de elites, eu poderia dizer que foi de elites, não de uma elite social, não de uma elite financeira, mas de uma elite emocional. Nesse sentido, só uma pequena quantidade de pessoas no Mundo inteiro tem realmente sensibilidade para o jazz, de forma séria, é um facto: 99% da população portuguesa prefere mil vezes o Emanuel ao Charlie Parker. Não há nada a fazer; ou, por outra, há muita coisa a fazer, não é é o Hot que o deve fazer. É a educação a partir da instrução primária. Ninguém pode exigir que um povo chegue aos vinte anos a gostar de teatro, de música ou de ópera se até aos vinte cinco anos nunca foi ao teatro, nunca ouviu música e nunca foi à ópera. As pessoas não gostam do que não percebem. Num país que não fomenta a educação cultural é perfeitamente natural que a maior parte das pessoas não goste de jazz. Portanto, eu não concordo que o jazz não está na moda... o jazz nunca esteve na moda. Embora, e isso é um facto, hoje seja politicamente correcto dizer que se gosta de jazz. Mas uma coisa é dizer que se gosta, outra é gostar.
JNPDI: Como está hoje o Jazz em Portugal?

BM: Está como o jazz que se toca em todo o Mundo, numa fase de procura. Mas eu acho isso completamente normal; uma arte verdadeiramente criativa não pode estar dezenas de anos a fio em fase de grande criatividade. O período de grande criatividade não pode ser eterno e os músicos de jazz e os críticos não estão preparados para admitir isto. Não é possível viver a fase que eu vivi de em quinze anos ter visto aparecer o Parker, o Coltrane, o Eric Dolphy... Eu acho que o jazz está vivo e bem vivo, está numa fase de expectativa, está a digerir tudo o que foi feito para trás e há-de aparecer alguém que abra uma porta qualquer.

JNPDI: Que porta pode ser essa?

BM: Durante muito tempo no jazz explorou-se a melodia, os primeiros improvisos eram feitos melodicamente. Depois, vivemos um período de muitos anos em que se explorou a harmonia e manteve-se a exploração rítmica muito parada. Não vejo razão nenhuma para que uma nova corrente actual não faça da exploração rítmica o eixo do jazz.

JNPDI: Quem pode liderar essa mudança?

BM: Não sei? acho muito interessantes as tentativas que foram feitas pelos grupos do Marsalis há uns dez anos. Ele tem experiências bestiais do ponto de vista do desdobramento rítmico das suas peças, o metric modulation, como é chamado, que é uma coisa muito curiosa e que o jazz explorou ainda pouco até agora. É um caminho que pode ser explorado.

JNPDI: Que músicos ouve da nova geração?

BM: Ouço muito a Maria Schneider, acho-a uma Ellingtoniana fascinante. Confesso que ouço muito pouco as correntes subsidiárias do Free, não me emocionam, não me dizem nada. Quando a arte não emociona, não me diz nada. Não vou dizer que é mau, estou a dizer que não me interessa. O que eu não percebo no Free agora é uma coisa que eu acho muito curiosa nos críticos que é terem a tendência para dizer bem de todas as correntes subsidiárias do Free que estão hoje feitas como vanguarda. De vanguarda não têm nada, foram vanguarda há quarenta anos. E as pessoas que criticam o Duarte Mendonça por ser um dinossauro que ficou anquilosado nos anos 55, são as mesmas pessoas que ficaram anquilosadas nos anos 60; só são cinco anos mais modernas... Por que é que um músico da linha mainstream há-de ser destruído só porque tocava música ligada ao be bop e o músico que em 2003 toca música que esteticamente está ligada à música dos anos 60 é um músico de vanguarda? Isto eu não percebo...

[entrevista inédita, gravada em Setembro de 2003]


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